Mestrado Profissional em Propriedade Intelectual e Inovação
Disciplina: Proteção ao Patrimônio Imaterial
TOMBAMENTO: PARTICIPAÇÃO CIDADÃ E INTERATIVIDADE
Professoras:
Patrícia Peralta e Carla Belas
Autora: Maysa Blay
RESUMO – O tombamento é um
instrumento legal, do poder público que tem por finalidade a preservação de
bens materiais com valor histórico, cultural e afetivo. No Brasil, inicia-se em
1937 a utilização do tombamento na preservação de bens com significado especial
para as coletividades. O presente trabalho tem como meta averiguar como e se o
cidadão se apropria deste instrumento com vistas a promover a preservação de um
bem ou de um conjunto de bens de lhe seja de valor. Com este fim, foram examinados
nove casos recentes de ocorrências que envolveram a questão do tombamento, na
região sudeste do país. Observou-se, paralelamente, nas distintas situações
examinadas, a atuação do poder público investido do poder de executar o ato do
tombamento, sua relação com os cidadãos e com outras instituições que devem
estar presentes como atores em cada processo de preservação.
PALAVRAS-CHAVE: Tombamento, participação cidadã,
articulação entre instituições
ABSTRACT – The preservation of historical buildings is
a legal governmental tool that has, as a goal, the protection of material,
cultural and affective heritage. In Brazil, the legal process of historical
building preservation, with a special meaning for communities, started in 1937.
The present research aims at checking how and if the Brazilian citizens get a
hold of the preservation tools as a means to protect heritage that is important
for communities. In order to achieve this goal, nine cases of building
preservation were examined, all recent occurrences in the Southeastern region
of the country. Aside from studying citizen involvement with preservation of
historical heritage, the way in which governments, in charge of it, was also
examined, as well as its relation with citizens and with other institutions
that should be involved in each case.
KEYWORDS: Historical building preservation, citizen
participation, relationship among institutions
1. INTRODUÇÃO
A percepção da necessidade de se preservar o patrimônio é um fenômeno mundial.
O desejo de refrear as mudanças que os ambientes edificados ou naturais sofrem está
presente em uma parcela da sociedade. O tombamento do patrimônio trata de preservação
de suas qualidades históricas, culturais, estéticas e afetivas. Os benefícios decorrentes
são a conservação ou a significação renovada de referências e identidades
individuais e coletivas, de valores como solidariedade, de noções como do que é
belo e da própria estabilidade das comunidades (LEWINSOHN-ZAMIR, 1997).
Em 1972, a Organização das Nações
Unidas para a Ciência e a Cultura (UNESCO) adota a Convenção do Patrimônio
Mundial. Sua intenção, com a criação deste instrumento de abrangência
internacional, é o incentivo para que sejam preservados os bens de natureza
cultural e natural que sejam referências para a identidade de comunidade e povos.
O Brasil aderiu à convenção em 1977. Em 2003, a UNESCO reconhece a importância
da preservação do patrimônio cultural com a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural.
No presente trabalho, são
apresentadas questões ligadas ao instituto do tombamento de bens edificados,
com seus significados imateriais – o que é, para que, para quem, como se
procede – para em seguida investigar como as questões ligadas a tombamento de
bens do patrimônio histórico e cultural chegam à sociedade. Com este fim,
procedeu-se à apresentação de casos recentes que envolveram a preservação, ou
não, de determinados bens, em distintas comunidades. O que se quer apreender
com esta revisão é que atores clamam por preservação de bens, pelo que reclamam,
e como atua o poder público – o IPHAN, outros órgãos ligados a tombamento de
bens, e, em cada caso, outras instituições que deveriam atuar no sentido de
preservar bens patrimoniais.
2. TOMBAMENTO: O QUE É?
No
seu artigo 216, a Constituição Federal trata de patrimônio e tombamento com os
dizeres: "constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza
material e imaterial tombados individualmente ou em conjunto, portadores de
referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da
sociedade brasileira". Tombar compreende os atos de inventariar, arquivar,
registrar, proteger, assegurar, garantir a existência de um bem ou de um
conjunto deles (CREA, 2008).
O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN) agrega que tombamento é um ato do poder
público, realizado pela aplicação de legislação específica das três
esferas de governo, federal, estadual ou municipal. Tombar é preservar contra a
destruição e a descaracterização bens que possuam valor histórico, cultural,
arquitetônico, ambiental e afetivo. Este instrumento legal visa preservar bens
que façam parte da memória coletiva.
O ato do tombamento pertence à esfera da proteção da
Propriedade Material. Ela abarca bens imóveis ou móveis. Seu efeito mais notável
na sociedade é o de proteger da destruição edifícios e monumentos; mas obras de
arte, fotografias, livros, maquinário e mobília, por exemplo, podem também ser
tombados. Também podem estar entre os alvos deste instrumento legal de
preservação praças, ruas e até mesmo cidades, florestas, corpos d’agua e
outros.
Num sentido mais
amplo de tombamento, pode-se falar em preservação. Para Maria Lúcia Bressan
Pinheiro[1]
(s.d.), a preservação trata de atos como
intervenções físicas no bem cultural, além das políticas públicas. A
preservação, para esta arquiteta, está destinada a proteger e manter um
determinado patrimônio para as futuras gerações. Já o tombamento, define a
autora, como medida legal, está incluído dentre as ações em favor da
preservação. No Brasil, porém, onde não há a tradição[2] de se preservar
edificações e outros bens, o tombamento acontece com grande frequência como
medida inicial a se contrapor a investidas dos interesses econômicos do capital especulativo.
Para Regina Márcia Tavares (CORREIO POPULAR, 2014),
“patrimônio não é só pedra e cal”, inclui a cultura imaterial. Não é só o que
está construído, mas também a tradição associada. E, para a juíza Rosana Ferri (CONSULTOR JURÍDICO, 2013), “a ‘coisa
tombada’ não é imutável, respeitados os limites impostos pelos órgãos de
proteção”.
3. QUEM PROCEDE AO TOMBAMENTO E O QUE PODE SER TOMBADO
Nos
três níveis de governo, federal, estadual e municipal, bens de valor histórico
e cultural podem ser tombados pelo IPHAN (federal), pelos órgãos estaduais e
municipais devidos e pelos Conselhos de Defesa do Patrimônio[3]. O
tombamento também pode ser dar também no nível internacional, para bens de
excepcional valor e, neste caso, é feito pela UNESCO (CREA, 2008). Há uma
escala de tombamentos:
a.
Bens
de interesse da humanidade, inscritos na Lista do Patrimônio
Universal pela UNESCO;
b.
Bens de interesse
nacional,
tombados pelo Iphan;
c.
Bens
de interesse estadual, tombados pelo órgão de defesa do
patrimônio de cada estado;
d.
Bens
de interesse local, tombados por órgãos de defesa do
patrimônio existentes nas cidades.
d.
4. TOMBAMENTO: PARA QUE?
Jane Jacobs (1961), em “The Death
and Life of Great American Cities”,
afirma que a destruição de antigas construções fere as comunidades e a economia
local, criando espaços urbanos que não são naturais. Pois, cada
pessoa faz parte de um todo, de uma sociedade e de sua história. Os bens
preservados e a cultura que deles se depreende propiciam a compreensão do
passado e a reflexão sobre o presente e o futuro. Quando o patrimônio não é
preservado, rompem-se estes elos[4] (CREA-SP-2008).
Enzo Dimatteo (2012), ao debruçar-se sobre bens imóveis, apresenta cinco
razões para a preservação. A primeira é uma natureza neurológica –
“neuroestética”, a beleza, artes, design e arquitetura “que fazem bem ao
cérebro”. A segunda razão para se preservar patrimônio é que ele conecta as pessoas
ao seu passado e história. A terceira é que a preservação contribui para a vida
cultural e a economia das cidades, tornando-as acolhedoras e convidativas.
Dimatteo ressalta que velhas construções, ao serem renovadas, frequentemente,
passam a abrigar empreendimentos inovadores, enquanto que, construções novas, erguidas
sobre demolições, com muitos andares, são ocupadas em geral por grandes
empresas, complexos de compras, e outros usuários que podem arcar com os altos
custos dos espaços. Como quarta razão para conservar patrimônio, o autor aponta
a valorização econômica dos próprios imóveis. E, por último, destaca questões
sociais e ambientais para se restaurar velhos prédios: a criação de oportunidades
de trabalho, o menor emprego de materiais novos e a menor produção de
resíduos.
Julia Rocchy (2014a) afirma que velhas construções são mais interessantes
e exercem uma atração sobre as pessoas. Seus materiais, como madeira, mármore e
velhos tijolos encontram, para a autora, ressonância com as pessoas. Ainda que
por nada mais, os vestígios de usos passados, os estilos e a estranheza que
certos ambientes podem provocar são, por si só, motivadores de boas reflexões.
Para Rocchy, uma cidade necessita de seus velhos prédios preservados para
manter uma sensação de permanência e herança como lembrança da cultura local e
de sua complexidade.
Sobre casas recentemente demolidas
em São Paulo, o arquiteto João Verde (2013, apud SEREZUELLA, 2013) afirma que "são
perdas, principalmente por se tratarem de prédios que tinham atividades
comerciais importantes e que mantinham relações de reconhecimento e de carinho
com seus usuários". Expressa nesta fala o valor simbólico, imaterial do
bem material destruído.
O
estudo “Older, Smaller, Better: Measuring how the
character of buildings and blocks influences urban vitality”, citado por Julia Rocchy (2014b),
realizado nos Estados Unidos sobre três cidades, São Francisco, Chicago e
Washington, demonstra que áreas que contem antigas construções preservadas, com
prédios menores, fortalecem as comunidades locais, isto é, bairros que preservam
casas e prédios de menor escala saem-se melhor econômica, social e
ambientalmente falando do que áreas em que predominam as novas construções,
muitas vezes com muitos andares. Nas áreas onde é mantida a escala humana dos
edifícios, é onde se caminha e pedala mais, e onde há maior flexibilidade de
ocupação. Estas áreas recebem tipos variados de negócios como as que estão no segmento
da economia criativa, ou são empresas que lidam com produtos e serviços
inovadores, da mídia, do comércio, gastronomia e gastronomia de rua. Ademais, abrigam
pessoas vivendo ali – num maior adensamento urbano – e que geram uma variedade
grande de empregos.
Não há como concluir esta sessão
do trabalho sem se voltar a Jane Jacobs (1961) quando ela afirma que “as
cidades precisam tanto de suas velhas casas que, sem elas, é provavelmente impossível
que existam ruas e bairros vigorosos”.
5. TOMBAMENTO: PARA QUEM?
A
preservação do patrimônio cultural no Brasil nasce com a tônica de registros de
bens selecionados ao gosto de uma elite intelectual, branca e católica. Lucas
Passos e Maíra Cerqueira Nascimento (2013) demonstram estas preferências no
caso do estado do Sergipe, onde a maior parte dos bens tombados são igrejas católicas.
Agregam observações sobre como se constitui o Conselho de Cultura do estado e
concluem que, em Sergipe, uma elite exerce seu poder empregando-se de atos de
tombamento de bens que os representam.
O
CREA de São Paulo (2008), perguntado se o tombamento deve preservar apenas bens
luxuosos e de grande porte, contesta, na publicação, que imóveis modestos, como
as casas de tábua construídas à margem das antigas ferrovias - que possuem
técnicas construtivas interessantes e elementos originais que expressam hábitos
e valores culturais de um tempo histórico – ou, mesmo, casebres de taipa de mão
ou taipa de pilão e fábricas, por exemplo, podem ser bens tombados.
É
importante considerar-se ainda que o pedido de tombamento pode provir do proprietário
do bem, da sociedade, do Conselho de Defesa do Patrimônio, de entidades, de
pessoas de direito público e de órgãos municipais, estaduais e federais.
6. TOMBAMENTO: CAMINHOS?
No nível técnico, o processo de tombamento se dá, de acordo
com o IPHAN, inicialmente pelo pedido de abertura de um processo, que pode
partir da iniciativa de cidadãos ou de uma instituição pública. O bem que se
deseja proteger é então preliminarmente avaliado e submetido à deliberação das
unidades técnicas responsáveis pela proteção de bens culturais. Se aprovado o
tombamento do bem, seja ele cultural ou natural, será então expedida uma notificação
ao proprietário. O bem, nesta fase, já se encontrará sob a proteção legal. Restará
a decisão final do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural. Aprovado, o ato do
tombamento será homologado pelo Ministério da Cultura e publicado no
Diário Oficial. Conclui-se com a sua inscrição num dos Livros do Tombo e com sua
comunicação formal aos proprietários[5].
No nível filosófico e social, Jürgen
Habermas (1986), em sua Teoria da Ação Comunicativa, afirma que a comunicação livre, racional e crítica,
entre as partes, deve se antepor à “razão instrumental” -
técnica, política e monetária. A esfera
pública, para o autor, é o lugar privilegiado para o diálogo e o entendimento
entre grupos da sociedade para se chegar a consensos, dentre eles, o que trata
do valor simbólico dos bens. Esta é uma importante
reflexão de Habermas, que se estende à questão do tombamento: a ação do que
conduz à preservação patrimonial deve ser fruto do consenso entre distintos
atores. Seria um equacionamento de valores diversos atribuídos a um bem por
diferentes partes na sociedade, em oposição a uma decisão vertical e técnica
que atenda a um grupo em detrimento a outro, ou a um critério técnico que sobrepasse
as escolhas de outra natureza.
Daphna Lewinsohn-Zamir (1997), no
caso de tombamentos de bens imóveis individuais, propõe a negociação prévia e a
compensação monetária, ou de outra natureza, ao proprietário do imóvel a ser
tombado, o que pode gerar maior engajamento no processo e colaboração
voluntária. Numa esfera de atuação em que órgãos públicos valem-se, com
frequência, de instrumentos coercitivos, a autora – como Habermas (1986) - sugere
a busca por consenso entre as partes. A questão que está em jogo, aponta Lewinsohn-Zamir, é que o ato de tombamento impõe diversos ônus aos proprietários: a
restrição à promoção de mudanças radicais na estrutura dos imóveis, à sua
demolição e os custos decorrentes de preservação do imóvel - que recaem sobre o
proprietário.
7. TOMBAMENTO: CASOS
São apresentados nesta seção casos de
tombamento de edificações que, por distintas razões, sejam ou devam ser protegidas
da desfiguração ou de sua completa substituição. O que se observa é uma
profusão de matérias nas mídias padrão – jornais e revistas – e nas redes
sociais que denunciam, clamam e sugerem que bens materiais diversos sejam
mantidos e recuperados. A seleção não
possui pretensões estatísticas, mas são casos recentes, coletados a partir dos distintos
meios. O que se deseja observar é como e se a população participa e se mobiliza
em prol da preservação de bens do patrimônio coletivo e como atuam os órgãos
ligados ao tombamento, em cada caso.
A- DOI-CODI (SP). O CONDEPHAAT, Conselho de Defesa do Patrimônio
Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo, aprovou, por unanimidade, o tombamento do prédio que abrigou o
DOI-CODI (SP). Palco de tristes lembranças, este bem de interesse nacional deve
converter-se em local de memória, um Memorial dos Desaparecidos. A mobilização pela
preservação da memória do prédio partiu, em 2010, da iniciativa de Ivan Seixas, coordenador da Comissão Estadual da
Verdade e integrante do Conselho de Defesa da Pessoa Humana (CONDEPE). Entidades
de direitos humanos, como o Núcleo Memória e o Centro de Luta contra a Tortura.
Em 2013, a Comissão da Verdade de São Paulo “Rubens Paiva” o apoiaram, juntamente
com grupos militantes dos direitos humanos. A solicitação de tombamento do
DOI-CODI e de sua transformação em espaço público de memória foi feita à
Secretaria de Segurança Pública e à Secretaria Estadual de Cultura (CARTA
CAPITAL, 2014).
B-
SÃO
LOURENÇO (MG). A estância turística de São Lourenço
tem suas famosas águas exploradas para fins terapêuticos desde 1817. Desde 1998,
os habitantes da cidade denunciam que as nove fontes de água mineral estão
ameaçadas devido à superexploração do bem pela Nestlé Waters. Na ocasião, o
movimento de cidadãos AMAR’ÁGUA obteve com a Companhia de Pesquisa de Recursos
Minerais Serviço Geológico do Brasil (CPRM), ligada ao Ministério de Minas e
Energia, um estudo que apontava o rebaixamento contínuo dos níveis das águas em
São Lourenço e do aquífero subjacente. O Parque das Águas, local das fontes, segue
com seus ambulantes, como no passado, vendendo copinhos para os visitantes, mas
na cidade, vende-se água mineral São Lourenço, da Nestlé. Para proteger a água,
a AMAR'ÁGUA propôs ao IPHAN o tombamento do “recurso hídrico diferenciado”. No
ver de especialistas, porém, o tombamento do bem “difuso” não encontra
parâmetro legal. Envolveria a Agência Nacional de Águas (ANA), dentre outros
órgãos, uma vez que a água possui usos múltiplos. Não se sabe, também, a certo
se o tombamento do recurso hídrico impediria a exploração exacerbada para
engarrafamento. Outra proposta, mais simples, surgiu: o tombamento do Parque
das Águas como patrimônio cultural pelo Instituto Estadual do Patrimônio
Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA). Ficariam protegidos o projeto
urbanístico do parque, os fontanários e o balneário. O AMAR’ÁGUA, não satisfeito, teme que o
tombamento do parque vise tão somente aspectos arquitetônicos e históricos,
quando, o que os mobiliza é a exaustão do aquífero. O Ministério Público
alerta, no caso, para a relação histórica dos moradores com as fontes e deve
recomendar o registro da utilização das águas minerais na cidade, como
mecanismo de preservação da tradição imaterial. Será uma medida inédita no
Brasil e no mundo. Este instrumento poderia garantir o direito dos cidadãos de
São Lourenço de manterem um relacionamento diferenciado com suas águas,
facilitando-lhes, por exemplo, o acesso às fontes de água do parque.
C-
CASAS
CASADAS. O conjunto
neoclássico de casas conjugadas, localizado no Bairro de Laranjeiras, no Rio de
Janeiro, foi tombado em 1979, por iniciativa da AMAL - Associação de Moradores
de Laranjeiras. Trata-se de um bem de interesse local. A partir de 2002, iniciou-se o processo de
restauração das seis casas, que duraria dois anos e consumiria 3
milhões de reais. Em 2004, o edifício passa a ser ocupado, em
parte, pela RioFilme. Em 2007, surge um projeto de construção ali de duas salas
de cinema, mas é vetado pelo Instituto Estadual de Patrimônio Cultural com a
alegação de que teriam que ocorrer modificações no interior do prédio. Durante alguns anos, no anexo dos edifícios,
funcionou uma livraria e bistrô. Hoje este espaço está fechado. Os moradores,
organizados, novamente saíram à frente para propor novos usos daquele espaço,
amplo e subutilizado. Em 2010, a ideia era transformar as Casas Casadas em um
museu de memória do bairro. E, novamente a ideia de uma sala de cinema e
teatro. Fato é que chegamos a 2014 e os
moradores do bairro que não podem desconhecer o belo patrimônio, em bom estado
de conservação, perguntam-se como um espaço como este, da prefeitura, pode
estra fechado, sem utilização, sem cumprir sua função cultural para a cidade
(CBN, 2014).
D-
AEROPORTO SANTOS DUMONT. O Jornal O Globo de 09/05/2014 relata que, de acordo com Paulo
Stewart, CEO da empresa Saphyr, os trâmites legais para o início da construção
de hotel e shopping anexos ao Santos Dumont já estão sendo providenciados: “Tivemos
aprovação de todos os órgãos da prefeitura no último dia 29. O projeto está
agora no Iphan” (MAGESTE, 2014). A notícia choca os cariocas e, usuária do
Facebook indignada escreve acima da foto (Fig. 1.) “MAS NÃO É TOMBADO!!!”. Internautas
expressam massivamente sua indignação, “curtindo a postagem”.
E- PACAEMBU (SP). Uma resolução do CONDEPHAAT passou a autorizar
modificações no bairro paulistano tombado do Pacaembu. Lotes desocupados podem
ser desmembrados ou “remembrados”. O Pacaembu, um dos últimos bairros
preservados de São Paulo, deve agora converter-se em alvo de uma nova onda de especulação
imobiliária. A Associação Viva Pacaembu
expressa apreensão com as modificações no bairro. O Movimento Defenda SP prevê
o adensamento populacional na região. Enquanto protestam os moradores e arquitetos,
as imobiliárias festejam o fim das restrições de uso dos imóveis (BRANCATELLI; ZANCHETTA, 2010).
F- LARGO DO
BOTICÁRIO (RJ). Faz um ano que a Prefeitura
do Rio de Janeiro publicou o decreto da desapropriação dos imóveis do Largo do
Boticário, no alto do bairro do Cosme Velho (LIMA, 2014). Em estilo neocolonial,
foi moradia de cidadãos ilustres e é,
atualmente, local de grande visitação turística. Mas, está relegado ao
abandono. Suas casas estão ruindo (Fig. 2). Promessas da prefeitura, que
afirmam que irão revitalizar a área, não se cumprem. Há uma proposta de lei da
Prefeitura, através do Instituto Rio Patrimônio
da Humanidade, de 2012 (lei complementar 85/2012) que permite a utilização de
imóveis tombados pelo comércio. Os
moradores do bairro, organizados em associações, Viva Cosme Velho e Amigos e
Moradores do Cosme Velho, veem a permissão para uso comercial com bons olhos. O
novo uso é uma alternativa para a cara manutenção dos imóveis – este e outros
do bairro. As associações lutam por um Largo do Boticário ocupado por
atividades de uso público dos cariocas e dos milhares de turistas que visitam o
Corcovado e o Largo a cada ano.
G-
FÁBRICA
DE CIMENTO PORTLAND – Perus (SP). Em 1926 é instalada a
primeira fábrica de cimento no Brasil, a Fábrica de Cimento Portand – de origem
canadense. Entre 1962 e 1967, uma greve histórica, liderada pelo Movimento
Queixadas, deu origem à cultura de articulação e mobilização de trabalhadores
locais (MARIA, 2014). O Movimento pela Reapropriação da Fábrica de Cimento de
Perus, com início em 1986, alega que a fábrica tombada não tem recursos para a
restauração e sua conversão em centro de cultura e memória e em uma
Universidade Livre e Colaborativa (Fig. 3).
A arquiteta Raquel Rolnik (2013 a) ressalta, na reapropriação da
fábrica, a importância dos sentimentos expressos
pela população em prol da preservação do patrimônio arquitetônico simbólico da
memória coletiva.
H-
CINE BELAS ARTES
(SP), ODEON E LEBLON (RJ). O cinema de rua, Brasil afora,
encontra-se em situação vulnerável. O Cine Ritz, de 1943, em 1968, converteu-se
no Cine Belas Artes. Em 2011, porém, o Belas Artes fecha as portas. O aluguel e
valorização imobiliária da região haviam tentadoramente aumentado. Seus
frequentadores, inconformados, foram às ruas em defesa do cinema de artes. Criaram o Movimento pelo Cine Belas Artes, em
defesa do tombamento da sala e do retorno das sessões. Em 2012, CONDEPHAAT aprovou o tombamento da fachada do imóvel, de um
trecho de quatro metros do espaço interno, a partir da entrada, e da calçada,
em frente. O tombamento não envolve o uso do edifício - o prédio pode ser usado
para qualquer fim. O Movimento pelo Cine Belas Artes segue em luta para que a região seja convertida em Zona
Especial de Preservação Cultural (Zepec), que uma ideia para preservar o uso do
prédio como cinema (ROLNIK, 2013 b).
Há poucos
dias, as salas de cinema cariocas, Odeon e Leblon também encerraram suas
atividades. O Odeon, afirmam os proprietários, após reformas, será reaberto. O Cine
Leblon parece ser definitivo (Fig. 5). As razões são as mesmas: a batalha entre
a lógica afetiva e a econômica. O fechamento das salas de cinema representa uma
perda cultural para alguns; para outros, um negócio numa região valorizada da
cidade. Para salvar o cinema, seus proprietários propõem a construção de um
prédio de cinco andares, com a sala no térreo. O Instituto Rio Patrimônio da
Humanidade rejeita a ideia: o imóvel tombado não permite a alteração. A
manifestação de quem vê no Cine Leblon parte da história do bairro e do Rio foi
um abraço simbólico em seu redor (LO BIANCO; COSTA, 2014).
I-
CONJUNTO
DE ANTIGAS CASAS no
Bairro de Pinheiros (SP). Publicado no
Facebook: “ex-casa, ex-quintais, ex-silêncio, agora vai começar a barulheira em mais uma esquina de São Paulo. Até
quando vão deixar demolir todas as casinhas? A esquina tinha uma casa linda residencial e casinhas comerciais....e
agora?”. Após o “post”, um comentário: “para cada apartamento, 2 carros; mais
gente por metro quadrado e as vias continuam do mesmo jeito... caos..caos..caos.”.
Os comentários seguintes são: “Não curti”.
FIG.
6 Casas arrasadas em Pinheiros (SP)
8.
CONSIDERAÇÔES
FINAIS
Revistos
casos recentes em que a preservação do patrimônio e de seu valor cultural
esteve presente, buscou-se investigar a participação popular em cada situação, indício
de que o instrumento do tombamento está ao alcance do cidadão, e atuação do
poder público em cada caso.
Os
casos mostram a tendência à mobilização de cidadãos, de posse da percepção
coletiva da ameaça e da necessidade de se proteger bens do patrimônio. Variando
em intensidade e em grau de organização, os nove casos demonstram que, os
cidadãos estão ganhando consciência em relação ao valor histórico, cultural e
afetivo do patrimônio em suas comunidades. A participação de cidadãos no
processo de preservação de bens patrimoniais tende a torná-lo forte. Isto é
demonstrado com o movimento pela preservação da memória, como no caso do
tombamento do DOI-CODI, da água, bem vital, no caso de São Lourenço, do
patrimônio histórico para novos usos, no caso do Largo Boticário e das Casas
Casadas, ou da contenção ao avanço especulativo, para o Aeroporto Santos Dumont
e o bairro do Pacaembu, dos direito culturais, na situação dos Cines Belas
Artes, Odeon e Leblon, da memória da consciência cidadã, partindo de pessoas
humildes, na Fábrica de Cimento de Perus, ou da indignação frente ao desrespeito,
no caso das casinhas de Pinheiros, em São Paulo.
É
necessário que o cidadão ganhe conhecimento sobre a importância de se preservar
bens que lhe traduzam valores culturais, históricos e afetivos em suas
comunidades. Neste campo, o cidadão deve adquirir “educação patrimonial” e
noções sobre o efeito do tombamento. Neste sentido, o IPHAN vem atuando com a
criação de Casas Patrimoniais – centros de educação e sensibilização para
questão da preservação de bens históricos – em diversas cidades do Brasil.
Depreende-se
também dos casos estudados que o IPHAN e os órgãos estaduais e municipais de
preservação patrimonial devem promover maior interação com outras instituições,
de distintas naturezas, visando à preservação mais efetiva dos bens tombados.
No caso do DOI-CODI, a interação com os órgãos de cultura, educação e direitos
humanos se faz necessária; em São Lourenço, caso crítico, os órgãos de
preservação patrimonial devem interagir, dentre outros, com órgãos ambientais e
instituições acadêmicas; na situação do Largo Boticário e Casas Casadas, estão
em jogo também os órgãos de cultura e a consultoria jurídica para estudo sobre
adequação das regras de preservação para novos usos dos bens; o Aeroporto
Santos Dumont escancara a falta de diálogo com o órgão que preserva o Aterro do
Flamengo, onde o Aeroporto se insere; o bairro do Pacaembu e as casas demolidas
de Pinheiros (SP) demonstram a falta de interação com associações moradores; a
situação apresentada dos Cinemas, carece de maior interação com órgãos de
cultura e movimentos de bairro; por fim, na situação da Fábrica de Cimento de
Perus, cabe a participação de órgãos ambientais, cultura e turismo.
Por
fim, acrescente-se que as cidades, os conjuntos de bens e os bens individuais
preservados estão sujeitos a mudanças no seu ambiente, uso e estado de
conservação. Os órgãos de preservação de patrimônio, em todas as esferas, devem
estar abertos para recepcionar as comunidades afetadas e com elas dialogar,
agregando ao ato de tombamento o envolvimento de outras instituições que, em
cada caso, cabem, afinal, o bem tombado não está inerte - ele interage com o
seu entorno e mantém viva a dinâmica da memória, da história, da cultura e do
afeto.
9.
REFERÊNCIAS
BRANCATELLI
Rodrigo; ZANCHETTA Diego. Resolução
altera tombamento histórico do bairro do Pacaembu. O Estado De São Paulo. Secretaria Municipal da Cultura. Prefeitura de
São Paulo. 2010. Disponível em http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/imprensa/index.php?p=4772> Acesso em jun. 2014.
CARTA CAPITAL. Prédio onde funcionou DOI-CODI de São Paulo é
tombado. Sociedade. Da Redação.
28/01/2014.
CBN. Dez anos após restauração de mais de R$ 3 milhões, Casas Casadas não
recebem atividades. GLOBO.COM. Editoriais. Rio de Janeiro. 26/05/2014.
Disponível em < http://cbn.globoradio.globo.com/rio-de-janeiro/2014/05/26/DEZ-ANOS-APOS-RESTAURACAO-DE-MAIS-DE-R-3-MILHOES-CASAS-CASADAS-NAO-RECEBEM-ATIVIDAD.htm#ixzz33zqfN4Jo>. Acesso em jun.
2014.
CORREIO POPULAR. Condepacc muda
critério para tombamento de bens históricos. Portal da Cultura na RMC.
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[1] Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da
Universidade de São Paulo (USP) e diretora do Centro de Preservação Cultural
Dona Yayá (CPC-USP)
[2]
Maria Lúcia Bressan Pinheiro aponta a baixa escolaridade e as inúmeras
carências materiais por que passa grade parcela da população brasileira para o
pouco apreço nacional por preservacionismo.
[3]
Órgão colegiado integrante
da estrutura pública (municipal, estadual, federal), composto por um grupo de
pessoas representantes dos diversos segmentos da sociedade, que assessora as instituições
de governo conectadas com o processo do tombamento nos seus atos de preservação
de bens de valor histórico-cultural.
[4] No momento atual, a preservação de
bens materiais ganha novos sentidos, com a necessidade de preservação de
matérias primas e energia.
[5] O IPHAN na sua delegação de proteger o
Patrimônio Material (a instituição está também está cargo de Patrimônio Imaterial)
promove o tombamento de bens culturais classificando-os, segundo sua natureza,
em quatro Livros do Tombo distintos: 1) arqueológico paisagístico e
etnográfico; 2) histórico; 3) belas artes; e 4) das artes aplicadas. Cada
livro, por sua vez, está dividido em bens imóveis e móveis. Os primeiros são núcleos
urbanos, sítios arqueológicos e paisagísticos e bens individuais; os segundos
são coleções arqueológicas, acervos museológicos, documentais, bibliográficos, de
arquivos, vídeos de fotografia e de cinema (IPHAN, s.d.).
2 comentários:
Olá Maysa Blay,
Tenho interesse nesse tema. Bacana.
Podemos considerar a paisagem natural como um bem a ser tombado?
Vou ler com calma o seu texto. Parabéns,
Se puder responder à pergunta ficarei mais motivado para a leitura do texto.
Trabalho com educação a distância e distinguo interatividade de interação. O que é interatividade no seu texto?
Abraço,
Marcos
www.riopontorj.blogspot.com
Marcos, mil desculpas pela demora em responder. Tive uma problema com o blog e perdi o acesso a ele. Sim a paisagem natural também pode ser tombada. Não sei, porém, se aquela que o homem não mexeu - que deveria ser a mais "tombável". Refiro-me a parques, muitos dos quais são tombados.
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