RESUMO
Trabalho apresentado no ENAPID de 2013
Em 2011, a
Diretoria de Marcas do INPI – Instituto Nacional de Propriedade Industrial foi
contatada por representantes da etnia amazônica SATERÉ-MAWÉ para uma reunião na
cidade de Parintins. O grupo desejava compreender o que era uma marca e como poderia
obter o registro do nome SATERÉ, para assinalar produtos feitos a partir do guaraná.
Foi-lhes então
comunicado que ambos os termos SATERÉ e MAWÉ eram registros ou pedidos de
marcas no INPI, assinalavam guaraná, e seus titulares ou requerentes não eram representantes
da comunidade. A notícia provocou um clamor grave no grupo. Representantes do Conselho
Geral da Tribo Sateré-Mawé explicaram aos
representantes do INPI o sentido do waraná
para o povo SATERÉ: é ao mesmo
tempo uma bebida ritual, e a materialização do espírito do mestre, que inspira
o povo na sua busca por conhecimento e por harmonia. O fruto é o elemento
central da mitologia da nação SATERÉ-MAWÈ. São eles os descobridores,
domesticadores e guardiões do guaraná nativo, desde a sua origem, até o
dia de hoje. A partir dos elementos espirituais conectados ao waraná, o grupo, nas duas últimas
décadas, afastou-se da sua ligação histórica com o Guaraná Antártica – um
caminho ecológica e socialmente degradante para o povo – para uma nova
trajetória, de sustentabilidade, respeito às tradições e revalorização da etnia
SATERÉ-MAWÉ. Constituídos há uma década no Consórcio dos Produtores da Tribo Sateré-Mawé, o grupo vem
se esforçando para obter importantes certificações a fim de habilitar seu
produto para exportação para o Comércio Justo europeu. Nesta nova rota, buscam
uma marca (além da Denominação de Origem) para o seu produto.
Como o nome SATERÉ, apropriado por terceiros no
INPI, outros nomes de etnias brasileiras também se tornaram registros de marcas
de titulares desconectados com grupos indígenas. Em trabalho apresentado em
2013 no ENAPID - Encontro Acadêmico de Propriedade
Intelectual, Inovação e Desenvolvimento, sob o título PROTECÃO
AOS NOMES DAS ETNIAS INDÍGENAS BRASILEIRAS JUNTO À DIRETORIA DE MARCAS DO INPI [i], verificou-se inicialmente que diversas etnias ou grupos de
etnias estão progressivamente inserindo produtos nos mercados de grandes
cidades brasileiras, e no exterior. [ii] Também se
realizou uma busca por 90 nomes de etnias brasileiras, e no SINPI (Sistema de
Marcas do INPI usado até 2014) os termos foram pesquisados. Destes,
aproximadamente 30 eram pedidos ou registros de marcas que assinalavam produtos
ou serviços que poderiam ser equivocadamente atribuídos a grupos indígenas, mas
eram de titularidade de pessoas físicas ou jurídicas sem vínculos com os grupos
étnicos brasileiros ou seus representantes legais.
Assim, ademais
das diversas e ásperas interfaces entre etnias indígenas brasileiras e o Brasil
(e o mundo) dito moderno, que envolvem disputas sem tréguas por território e pela
apropriação indevida de conhecimentos tradicionais e de exemplares de
biodiversidade a eles associados – há ainda a apropriação de nomes das etnias
indígenas nacionais por indivíduos ou empresas, muitas das quais desejam dar a
seus produtos ou serviços uma aura ecológica. No caso dos SATERÉ, a etnia foi
atingida moralmente, no cerne de sua tradição religiosa e na sua honesta
tentativa de criar para si uma sobrevivência digna.
O INPI,
em sua Diretoria de Marcas, deve, no nosso entendimento, criar listagens dos
nomes de etnias indígenas e inseri-las nos seus sistemas de exame de marcas,
para que sirvam como orientação aos examinadores. Vale ressaltar que o USPTO
tem em seu sistema de buscas de marcas a listagem das insígnias das etnias
indígenas americanas para prevenir que terceiros delas se apropriem. O Canadá
também emprega ferramentas de propriedade intelectual na proteção de sua
cultura aborígene. Por fim, é importante lembrar que por quase 10 anos o SINPI
apresentava os nomes da biodiversidade brasileira. Isto havia sido o resultado
da demanda por proteção levantada no Encontro dos Pajés, em São Luiz do
Maranhão no ano de 2000, organizado pelo INPI. Estes nomes, porém, não foram
migrados para o novo sistema de marcas adotado há dois anos (IPAS). O INPI deve
criar com urgência o debate sobre a inserção, em seu sistema de marcas, dos
nomes relativos à biodiversidade nacional e às etnias indígenas brasileiras. Mais
do que um trabalho extra que possa isso acarretar aos examinadores de marcas, a
inserção destes elementos nas buscas, aperfeiçoará e qualificará o exame, além
de promover a nossa inserção, naquilo que estiver ao nosso alcance, como atores
em uma rede de proteção à biodiversidade brasileira e aos seus maiores guardiões
– os povos indígenas.
Por fim,
resta lembrar que os povos indígenas brasileiros envolvem um número aproximado
de 900.000 pessoas, distribuídas em 305 etnias, falantes de 274 idiomas. Estas
nações estão sob velhos e novos ataques: seguem os ataques da incansável bancada
ruralista do Congresso Nacional e a apropriação contínua de laboratórios
internacionais e de empresas de cosméticos por seus conhecimentos e por
elemento da biodiversidade a eles associados, mas a novidade na zona de
conflito vem do próprio governo federal interino, que propõe a absurda “des-demarcação”
de suas terras. Resta-nos lutar com os instrumentos de que dispomos no sentido
de nos antepormos a mais este retrocesso, a fim de fortalecermos estas ricas e
diversas nações dentro da nação brasileira.
Rio 13 de fevereiro de 2017
Maysa Blay Roizman
[i] De autoria de Maysa Blay Roizman e Walter Rosenstock
[ii] A
Associação Terra Indígena do Xingu (Atix) vende Mel do Xingu desde 1996 na rede
de supermercados Pão de Açúcar; a organização da Bacia do Içana (Oibi)
comercializa produtos dos Baniwa – cestaria, na rede Tok Stok, e pimenta em pó,
em restaurantes sofisticados; a Associação Wyty Catë comercializa os Frutos
do Cerrado - caju, juçara, bacuri, buriti e cajá - na parceria entre
índios e pequenos produtores do Maranhão e do Tocantins; as mulheres Kayapó, com
o Projeto Menire de 2006, transferem grafismos Kayapó para tecidos e adereços
de miçanga, e vendem produtos pelo seu sitio de internet; os Waimiri-Atroari empregam
produtos florestais - palhas, sementes, resinas, folhas, penas, resinas
vegetais e outros – na sua produção de cestas e outros artesanatos, e os vendem
em lojas próximas das aldeias - em 2011, inauguraram sua oitava loja em Presidente
Figueiredo, na Amazônia; distintos grupos oferecem serviços de ‘turismo étnico’,
como a etnia Pataxó, da Bahia e em Manaus, em diversas aldeias.