A Soja Transgênica, os direitos de Propriedade Intelectual
e os direitos de saber e poder decidir
Maysa Blay
Mestrado Profissional em Propriedade
Intelectual e Inovação.
Profs. Alexandre Vasconcellos e Celso
Lage
Não há
novidade na modificação de plantas promovida pela ação humana. Há muitos
milênios, vimos selecionando, combinando e cruzando variedades vegetais, irradiando
e provocando mutações intencionais e reservando as melhores sementes, para
obtermos alimentos mais suculentos, doces, sem espinhos e com outras
características desejáveis. Quase todos os produtos que descansam nas
prateleiras do mercado, mundo afora, são o resultado destas escolhas de nossos
antepassados.
Mais
recentemente, desde a década de 90, o que se consome no mundo é progressivamente
mais e mais composto por alimentos transgênicos. Diferentemente das técnicas
tradicionais, em que plantas semelhantes eram cruzadas, as técnicas de
transposição genética hoje o fazem entre organismos sem relação. Um determinado
gene de uma espécie de sapo pode ser transferido para uma variedade de soja, a
fim de promover nesta alguma característica desejável. Ou, uma sequência
genética proveniente de um rato pode ser transposta para uma alface, e existem outras
tantas combinações. Transgenia, neste contexto, visa, na maior parte dos casos,
conferir ao vegetal resistência a ervas daninhas, insetos, fungos, e a
intempéries. E mais, a planta transgênica pode trazer, em seu genótipo, além da
resistência à praga, também a resistência ao produto químico que a combate, mas
que a planta poupa. Este é o caso da
soja transgênica “RR” da Monsanto.
Diversas são pois
as questões a se considerar, quando se trata do emprego da soja transgênica
resistente ao glifosato - cujo nome comercial é Roudup Ready, “RR”.
Inicialmente tratamos da questão da saúde, do meio ambiente e da promessa de solução
para a fome, que estaria embutida na tecnologia transgênica. Depois, falamos do
histórico da entrada na soja transgênica no Brasil. Em seguida, sobre os
instrumentos de propriedade intelectual que se prestam a conferir proteção às
invenções e variedades vegetais que delas decorrem. Por fim, confrontamos visões:
a científica e política com alguns princípios ecológicos.
A questão da saúde
Os que
advogam que os transgênicos são seguros alegam que sua introdução é precedida
de testes rigorosos. Afirmam também que, em termos de composição nutricional, os
alimentos geneticamente alterados não se
modificam dos convencionais. Grupos de consumidores, por outro lado, em todo o
mundo, temem que o consumo de alimentos que carregam genes de espécies
radicalmente distintas daquela que (se pensa) estar ingerindo, podem trazer efeitos
indesejáveis para a saúde humana.
O Decreto de
Rotulagem de Transgênicos, Decreto Presidencial 4.680/03, exige que os alimentos
que contenham componentes transgênicos apresentem, em seu rótulo, a letra “T”
inserida num triângulo amarelo. O entendimento por detrás da exigência é a
transparência que as empresas devem ter frente aos consumidores de seus
produtos. No mercado brasileiro, porém, alguns produtos seguem a regra de
rotulação. A exigência de rotulação no Brasil coloca o país à frente de países
desenvolvidos, como os Estados Unidos, onde a alegação para não se usar o
rótulo em produtos que, à primeira vista, não diferem dos convencionais, é que
podem levantar “desnecessárias” suspeitas.
E, no Brasil, desde 2012, surgiram contestações na mesma linha
americana: o PL 4148/2008, do deputado Luiz Carlos Heinze (PP/RS), propõe a
eliminação da informação, no caso de não ser detectável a presença do OGMs
(Organismos Geneticamente Modificados) no produto final!
A questão ambiental
Para muitos
estudiosos, as questões ambientais envolvidas no emprego de transgênicos são de
maior importância do que as que estão diretamente relacionadas à saúde humana. Os
efeitos ambientais podem ser de longo prazo e os riscos muito grandes. Podem
afetar as trocas genéticas entre plantas, a polinização, a cadeia alimentar e a
preservação da biodiversidade. Superervas, insetos e fungos podem advir da
devastação química. O combate às variantes resistentes, por sua vez, envolverá
produtos químicos mais potentes e artifícios precários que podem, em curto
prazo, mostrarem-se ineficazes.
Alimentos transgênicos podem ser a solução para o problema da fome no
mundo?
Para diversos
cientistas a engenharia genética pode atender à fome de centenas de milhões de
pessoas malnutridas no mundo. Estas variedades de plantas podem, em seu
entendimento, aumentar o rendimento das plantações e oferecer variedades
resistentes a pragas e condições adversas, como secas, solos depauperados,
solos com altos teores de salinidade e porcentagem de metais, como alumínio.
Para os
críticos da engenharia genética, contudo, a solução para a fome está centrada
na má distribuição de alimentos e riquezas no mundo. Alegam também que a
tecnologia envolvida na transgenia não está voltada para os pequenos produtores
– estes não ofereceriam às empresas de biotecnologia e ao seu investimento
retorno suficiente. Acrescentam, além disto, que através do emprego de
instrumentos de Propriedade Intelectual – patentes e as proteções a cultivares
- as empresas de biotecnologia terminam
por limitar a reserva e a troca de sementes, criando sérios problemas
financeiros para produtores. Alega-se ainda, neste contexto, que quem lucra com
esta tecnologia são apenas as grandes empresas de biotecnologia.
Um breve histórico dos transgênicos no Brasil
As sementes
de soja transgênica entraram, no fim da década de 90, no Brasil de forma
clandestina. Em 2003, sua plantação foi liberada e regulamentada, e o país
tornou-se, rapidamente, o segundo
mercado para a Monsanto, perdendo apenas para os Estados Unidos. Na esteira da soja RR, surgiram também
variedades geneticamente modificadas de milho, arroz e de algodão. E à
Monsanto, seguiram outras empresas – Syngenta, Bayer, DowAgro, Aventis e outras, e no Brasil a Embrapa.
Desde a
legalização dos transgênicos no país, um destaque na mídia é o pagamento de
royalties por parte de fazendeiros, pela tecnologia patenteada. A necessária
discussão sobre o emprego da agricultura transgênica e suas implicações na
saúde e no meio ambiente, e o impacto econômico sobre produtores familiares estão
ainda em segundo plano na grande imprensa. Quem conduz as discussões alternativas
são organizações da sociedade civil e as redes sociais, mas sua pauta pouco
afeta as decisões macro econômicas das instituições governamentais.
A Lei de
Biossegurança (11.105/05), de 2005, criou regras sobre pesquisa em
biotecnologia no país e compôs a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança
(CTNBio), responsável pela regulação do setor de biotecnologia. O órgão aprovou,
desde então, cerca de 50 organismos geneticamente modificados, 35 dos quais são
plantas. Neste período, também, 85% da soja produzida no país, passaram a ser
variedades geneticamente modificadas.
O Ministério
da Agricultura e a Embrapa apoiam a tecnologia transgênica, enquanto o Ministério
do Desenvolvimento Agrário (MDA), conectado aos produtores familiares,
empenha-se em campanhas para trazer a público os efeitos indesejáveis
resultantes do emprego da tecnologia da transgenia e dos agrotóxicos em geral. É
fato que desde que o Brasil adotou a soja transgênica em escala comercial e
configurou-se como exportador de destaque da commodity, passou a desempenhar o triste papel do país campeão
mundial no uso de agrotóxicos!
Em 26/10/2013, matéria sobre
a CONAB:
Conab aponta aumento de 345% no uso de agrotóxicos
nos últimos 12 anos
“O aumento expressivo do uso de
agrotóxicos é um dos principais resultados da liberação dos transgênicos no
Brasil. Pesquisa apresentada pelo representante da Companhia Nacional de
Abastecimento (Conab), Asdrúbal de Carvalho Jacobina, durante o Seminário
Internacional “10 anos de Transgênicos no Brasil”, aponta que o uso de
agrotóxicos cresceu 345% na agricultura brasileira nos últimos 12 anos”.
Questões ligadas a
direitos de Propriedade Intelectual
No âmbito da
Propriedade Intelectual, a soja “RR”, como outras variedades vegetais
transgênicas, está apta a obter proteção das criações intelectuais
correspondentes dentro da LPI, Lei da
Propriedade Industrial nº 9279/96 e da LPC, Lei da Proteção de Cultivares nº
9456/97. Estas leis foram promulgadas dentro dos parâmetros do acordo TRIPS. E em
TRIPS a proteção patentária deve se estender a todos os campos tecnológicos,
incluindo aí os micro-organismos geneticamente modificados, e processos não
biológicos e microbiológicos. Plantas e animais podem ser protegidos por
legislação sui-generis. Desta forma, a LPI protege por patente os micro-organismos
transgênicos e processos não biológicos, que não ocorrem na natureza, e
variedades de plantas são protegidas através da LPC, um sistema sui-generis.
O estudo de
Roberta Rodrigues, Celso Lage e Alexandre Vasconcellos, denominado Intellectual property rights related to the
genetically modified glyphosate tolerant soybean in Brazil (2011) correlaciona as tecnologias protegidas
pelas patentes pipeline com a soja
“RR” protegidas pela LPC. O trabalho também demonstra que as patentes e a
proteção dos cultivares relacionados estavam extintas, na ocasião do referido
estudo, não cabendo as cobranças de royalties pela empresa detentora das
patentes - Monsanto.
O trabalho ainda
ressalta a importância da agregação da proteção conferida pela patente como
informação para a proteção da planta, ou semente, como cultivar. No caso da
soja “RR”, contrariamente, as variedades protegidas como cultivar não trazem a
informação sobre a construção genética que lhes confere resistência ao glifosato,
ou mesmo o número das patentes relativas à resistência ao defensivo
agrícola. Desta forma, afirmam os
autores, não se pode conectar a invenção protegida por patente, à variedade
protegida como cultivar - quem adquire as variedades de soja transgênica
protegidas pela LPC, o faz “no escuro”,
sem ter como saber que tecnologia ela embute.
Os autores sugerem que a variedade vegetal protegida pela LPC deve
conter, em seu resumo descritivo, o número da(s) patente(s) envolvidas, como base
para atender à exigência de “distintividade” da Lei de Proteção aos Cultivares.
Considerações Finais
O agrobusiness, predominantemente
exportador e transgênico, renderá 100 bilhões de dólares por ano nos próximos
10 anos, projeta o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Não parece
haver perspectivas, dentro do atual paradigma de governo, e em curto prazo, que
apontem para uma saída do modelo exportador de commodities e a volta a uma era pré-biotecnológica.
Por outro
lado, inúmeras fontes estimam que 70 a 80 % do que está na mesa do brasileiro
vem da agricultura familiar. Dados mais precisos, produzidos pela pesquisadora
Verena Glass, e publicadas pelo IPEA (GLASS, 2011), demonstram que, com exceção
de trigo, soja e carne bovina, os outros produtos consumidos pelo brasileiro
provem majoritariamente da agricultura familiar. Um novo design do campo brasileiro – ainda que
utópico - mais investimentos e pesquisas (como a promissora linha de pesquisa que
a Embrapa[1]
adota) para a produção agrícola familiar, pode elevar a qualidade e a
quantidade dos alimentos consumidos pelos brasileiros em seu vasto território.
A propriedade
intelectual, por sua vez, com suas ferramentas de proteção às invenções
contidas na tecnologia da transgenia (LPI) – processo e micro-organismos, e nas
variedades de plantas e sementes (pela LPC) são ferramentas interessantes para
remunerar os esforços científicos, como no caso da tecnologia da soja “RR”. O
trabalho de Roberta Rodrigues, Celso Lage e Alexandre Vasconcellos, neste
sentido, é de grande valia na elucidação do que estava em jogo nas exigências
de royalties pela Monsanto. Seu
trabalho é essencial como apoio aos usuários destas tecnologias na sua
contestação à cobrança indevida.
Resta-nos, enquanto
sociedade, realizar um debate profundo sobre que rumos queremos seguir. A
sociedade tem o direito de saber mais e optar. Para além de se proteger o
agronegócio contra cobranças de royalties
indevidas – o que é perfeitamente justo – resta-nos pensar, como produzir
alimentos de forma segura e sustentável, defender o meio ambiente, nossas
variedades vegetal única, a água e, acima de qualquer outra consideração, proteger
a saúde do povo brasileiro. Deve-se também aproximar a proteção patentária e
por cultivares do agricultor familiar, promovendo, no que lhe cabe, o aumento de
seus conhecimentos e sua consequente apropriação. Estas proteções devem ser mais
bem divulgadas a fim de se tornarem instrumentos eficazes de desenvolvimento do
país.
Referências Bibliográficas
Glass, V. IPEA. Agricultura –
Agricultura em família. Disponível em <http://desafios.ipea.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2512:catid=28&Itemid=23>
Acesso em out 2013
Ministério da Agricultura, Pecuária
e Abastecimento. Projeções do Agronegócio. Brasil 2012-13 a 2022-23. Projeções
de Longo Prazo. Brasília. Jun. 2013. Acesso em 26 de out 2013. Disponível em
<http://www.agricultura.gov.br/arq_editor/projecoes%20-%20versao%20atualizada.pdf >. Acesso em out 2013.
Rodrigues R, Lage CLS,
Vasconcellos AG. 2011. Intellectual
property rights related to the genetically modified glyphosate tolerant soybeans in Brazil. Anais da Academia Brasileira de
Ciências. Versão impressa ISSN 0001-3765. Vol. 83 no. 2 Rio de Janeiro, jun.
2011.
[1] A
Embrapa tem desenvolvido uma linha de pesquisas com transgênicos, aparentemente,
mais sofisticada, como o de ‘promotores específicos’ – cuja transgenia não se
expressaria em frutos e raízes- por exemplo.
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