segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

A CONVENÇÃO SOBRE A PROTEÇÃO
E PROMOÇÃO DA DIVERSIDADE
DAS EXPRESSÕES CULTURAIS E O DIREITO INTERNO

Trabalho produzido para o Mestrado da
 Academia de Propriedade Intelectual, Inovação e Desenvolvimento.


Professor - Denis Borges Barbosa
Autora - Maysa Blay Roizman

 

RESUMO - O presente trabalho examina a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, aprovada pela UNESCO, e a história de sua construção, os direitos culturais dentro do ordenamento jurídico brasileiro, e, com brevidade, traça um panorama do cenário cultural e da diversidade cultural dos últimos anos no Brasil, buscando as zonas de tangenciamento entre a CDC, os direitos culturais da lei nacional e a área cultural no país. Finalizando, são apresentados comentários de quem pensa cultura e diversidade cultural no Brasil.

PALAVRAS-CHAVE Convenção da diversidade cultural, diversidade cultural, políticas culturais.

ABSTRACT - The present study examines UNESCO’s Convention on the Protection and Promotion of the Diversity of Cultural Expressions, and the history of its construction, the cultural rights contained in the Brazilian legal order, and a brief general picture of the cultural ambience in Brazil in recent years, in search of intersections between the CDC, the national cultural rights and national cultural policies. Finally, the comments of intellectuals that reflect cultural related themes in Brazil are presented. 

KEYWORDS: Convention on Cultural Diversity, cultural diversity, cultural policies



 

1.  INTRODUÇÃO

 

O interesse em se estudar a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais (CDC) é que este é o primeiro tratado internacional a elevar cultura a um patamar jurídico. Sua contribuição para o ordenamento jurídico internacional se faz através de conceitos basilares com relação à diversidade cultural. A Convenção conecta sua preservação e promoção com a manutenção da paz entre as nações e com o desenvolvimento. Como princípio de destaque, dentre outros, está o de que os Estados são soberanos para desenvolver políticas públicas na área de cultura. Seu importante texto final atesta a vitória dos Estados que, na sua construção, lutaram por fazer prevalecer a visão de que os bens culturais, expressivos de identidades e valores sociais, possuem natureza especial e excepcional ao rol de serviços e produtos meramente comerciais. 

A CDC, como tratado internacional que o Brasil ratificou, foi internalizada pelo sistema jurídico nacional, e veio somar-se aos direitos culturais já garantidos pela Constituição Federal Brasileira de 1988.

Mas para que a CDC ganhe força no Brasil – e assim também, no cenário internacional e interno dos Estados que a ratificaram - será preciso que o direito esteja próximo à práxis. Para averiguar se esta proximidade existe, procedeu-se à análise de como o somatório de direitos culturais nacional interconecta-se com o panorama cultural do país. Neste sentido, procurou-se desvendar o quanto da prática da cultura, pelas instituições de governo, em suas políticas públicas, e por entes privados, tem adotado as diretrizes propostas pela Convenção e as disposições constitucionais sobre direitos culturais. Esta análise será acrescida por recomendações feitas por intelectuais que pensam diversidade cultural e apontam caminhos para isto.

 

2. OBJETIVOS

 

O objetivo do presente trabalho é esclarecer como a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais da UNESCO foi internalizada ao sistema jurídico nacional, que instrumentos constitucionais seu conteúdo veio a reforçar e como o tratado e as normas internas sobre direitos culturais se fazem presentes nas diretrizes para as práticas culturais no Brasil – da sua cultura de massa às políticas públicas para o segmento cultural.  

 

3. METODOLOGIA

 

A pesquisa realizada para elaboração do presente trabalho foi majoritariamente bibliográfica, tendo sido consultados livros, publicações periódicas, trabalhos acadêmicos, publicações de instituições de apoio cultural e outros. Usou-se material em papel e obtido eletronicamente, da Internet.

Empreendeu-se também a entrevistas – que não foram gravadas em suporte eletrônico - e a inúmeras conversas com pessoas ligadas, de distintas formas, a cultura, e que, embora não citadas ou referenciadas, auxiliaram sobremaneira a constituir a pesquisa.

 

4. A CONVENÇÃO SOBRE A PROTEÇÃO E PROMOÇÃO DA DIVERSIDADE DAS EXPRESSÕES CULTURAIS

 

4.1 Aspectos relevantes da CDC

 

O texto da CDC se inicia com pressupostos capitais: de que “a diversidade cultural é patrimônio comum da humanidade, a ser valorizado e cultivado em benefício de todos”, de que “os bens e serviços culturais possuem uma dupla natureza - sua dimensão simbólica e econômica”, e de que todas os “Estados são soberanos para programar políticas culturais, proteger e promover suas indústrias culturais”.   

Neste espírito, a redação da Convenção prossegue, expondo as múltiplas razões porque a UNESCO adotou a Convenção, que visa proteger e promover a diversidade cultural e que orientam também princípios, medidas para sua adoção e os seus objetivos, quais sejam: promover capacidades e proteger valores humanos, o desenvolvimento sustentável das comunidades, e seus conhecimentos tradicionais, a manutenção da paz, o respeito aos direitos humanos e à pluralidade cultural, o incentivo às políticas que visem o desenvolvimento, a erradicação da pobreza e a livre circulação de ideias, à valorização do papel da mulher na sociedade e da liberdade de expressão, a educação, a multiplicidade de idiomas e a criatividade, entre tantas outros.

De especial importância é a relação clara que a Convenção estabelece entre a promoção e a proteção da diversidade cultural e o desenvolvimento, ressaltando a complementaridade entre os aspectos econômicos e culturais do desenvolvimento e sua conexão com a sustentabilidade – ecológica e econômica (BARACAT, 2012).
 Por fim, há fatos relevantes como o de que a propriedade intelectual ter sido mantida fora do texto da CDC[1] e de que a UNESCO tenha optado pela forma de Convenção para o documento, assim estabelecendo um compromisso jurídico obrigatório entre as partes envolvidas (PITTOMBAS, 2011).

 

4.2 Histórico

 

As questões que levarão à constituição de uma Convenção sobre Diversidade Cultural delineiam-se a partir das primeiras décadas do século XX, quando uma indústria cultural começa a surgir. A “indústria do entretenimento” surge com o cinema (ROSENFELD, 2003). Este será o primeiro veículo de comunicação e entretenimento de massa. A França é a potência que sai à frente da nascente arte, mas, a partir da Primeira Guerra Mundial, os Estados Unidos passam a ter o seu pleno domínio.

A hegemonia americana na indústria do cinema terá por base uma produção fabril nos estúdios de Hollywood e as rédeas de sua comercialização, distribuição e das redes de salas de exibição. As fórmulas de sucesso, o pedestal em que estrelas de cinema são postas, as práticas comerciais agressivas e, frequentemente, coercitivas e monopolistas (MATTA, 2008), fazem da “sétima arte”, já na primeira metade do século XX, um produto de natureza industrial e comercial disputadíssimo entre investidores.

Neste cenário, surgem reações em vários países que desejam proteger e promover suas próprias indústrias culturais. As “cota de tela” [2], que surgem já na década de 40, são inicialmente propostas pela França, Inglaterra, Alemanha e Canadá (MIGUEZ, 2011). Por muitas décadas – e isto se propagará para a televisão – chegando aos dias atuais, a reserva de tempo nos meios de comunicação audiovisuais para exibição de produções locais, será o principal recurso empregado frente à maciça presença dos produtos culturais estrangeiros – predominantemente americanos - nas salas de cinema e na programação de televisão.

Em 1982, na Conferência Mundial sobre Políticas Culturais da UNESCO, denominada Mondiacult, surge um novo foco para a questão cultural. Reconhece-se a fundamental ligação entre políticas culturais e diversidade cultural (UNESCO, 2006). Em 1988, a ONU lança a Década Mundial do Desenvolvimento Cultural e cria - prestigiada por Claude Lévi-Strauss e Celso Furtado - a Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento (MIGUEZ, 2011).

Em 1993, a questão cultural – com primazia dos audiovisuais – chega às negociações do Acordo Geral de tarifas de Comércio (GATT), na Rodada do Uruguai. Criada aí a Organização Mundial do Comércio (OMC), será por esta instituição que a questão cultural irá circular. Neste fórum, embater-se-ão os que defendem produtos culturais como mercadorias – liderados pelos Estados Unidos - e os que propõem a “exceção cultural” [3] como França e Canadá (MATTELART, 2006).  Para Divina Frau-Meigs (2006), o debate sobre a “exceção cultural” é o cerne de uma das primeiras crises pós-guerra-fria. Para a autora, o desafio colocado ao poder hegemônico dos Estados Unidos possui natureza sociocultural, que não opõe resistência a um país bélica e economicamente poderoso, mas a um país que exporta produtos “sedutores”.   

Em 2001, diante de um processo multifacetado de globalização, de evidências e riscos de maior homogeneização dos padrões culturais no mundo, o conceito da “exceção cultural”, dá lugar à visão de cultura pelo viés da proteção e promoção da diversidade cultural (PITTOMBO, 2011). Durante a 31ª Conferência Geral da UNESCO, a Declaração Universal sobre Diversidade Cultural é aprovada. Em sequência, em 2005, em Paris, é aprovada a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, pela 33ª Conferência Geral da UNESCO (UNESCO, 2006).  O novo marco normativo de nível internacional na área cultural é o coroamento de décadas de embates da UNESCO para prover a cultura com um status jurídico (PITTOMBO, 2011). Adotada então por 148 Estados, teve votos contrários dos Estados Unidos e de Israel, e abstenções por parte da Austrália, Honduras, Libéria e Nicarágua. A adoção da Convenção, com o espírito favorável à proteção e promoção da diversidade cultural, foi à vitória final do grupo europeu, e dos países que os apoiaram [4].  

 

5. OS DIREITOS CULTURAIS NO BRASIL E A INTERNALIZAÇÃO DA CDC

 

Os direitos culturais são direitos humanos, inerentes a todos (SOUZA, 2013), proclamados no Artigo 27 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Os direitos culturais no Brasil constam da Constituição Federal (CFB) (BRASIL, 1988) em diversas de suas normas. Bernardo Machado (2011) informa que sete, de nove títulos da CFB, tratam de questões relativas a cultura. Para Machado, existe uma firme base constitucional para alicerçar políticas culturais no Brasil. Das normas que tratam diretamente os diretos culturais, destacam-se o Artigo 215 e 216. O Artigo 215 afirma que o Estado deverá garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais, protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional, e para o qual, a lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais. Pelo Artigo 216 – A, o Sistema Nacional de Cultura é criado e organizado em regime de colaboração, de forma descentralizada e participativa; esta norma legal institui um processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura, democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da Federação e a sociedade (BRASIL, 1988). Seu objetivo é promover o desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos culturais. 

Somado ao conteúdo constitucional que se refere a direitos culturais, estão os julgados do Superior Tribunal Federal (STF). Nos casos, direitos culturais foram confrontados com outros direitos e prevaleceram. Foram os casos da “meia entrada” do estudante e dos direitos autorais para festas populares, como o Carnaval, discutidos dentro das regras dos direitos econômicos da livre iniciativa; o caso da “farra do boi” de Santa Catarina, uma tradição cultural, permaneceu autorizada, com excessos dosados pelo bom senso (BARBOSA, 2011).

Acrescida aos direitos culturais constantes da CFB e aos julgados do STF, está a CDC, ratificada pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo 485/2006. A internalização da Convenção ao ordenamento jurídico brasileiro incorpora a lei ordinária[5] e, portanto, ganha abrangência nacional sem confrontar os princípios constitucionais.

 

6. PANORAMA CULTURAL NO BRASIL COM RELAÇÃO À DIVERSIDADE CULTURAL

 

A fim de analisar se o arcabouço jurídico sobre direitos culturais está tendo efeitos na práxis cultural brasileira, examinamos evidências e indicações de que as diretrizes para proteção e promoção da diversidade cultural, propostas pela Convenção e presentes na lei brasileira, estão presentes no panorama da cultural brasileiro, da cultura de massa e das políticas públicas do Ministério da Cultura (MINC) [6] - no período de 2003, até o presente[7].

 

 

6.1 A diversidade cultural na TV e no Rádio

 

6.1.1 TV pública: A TVBRASIL, emissora da Empresa Brasil de Comunicação – do MINC - foi estruturada em 2003 (a partir de emissoras regionais, que se extinguiram) como um projeto televisivo com finalidade pública. Adotou-se, em acordo com as diretrizes do MINC, sob Gilberto Gil, o claro viés da promoção da diversidade cultural, com a veiculação de conteúdos regionais e estrangeiros independentes, com inúmeros programas nacionais, de arte e cultura e séries, como a DOC.TV, DOC Latino-américa e DOCÁfrica (ROCHA, 2013).

O projeto de TV pública nacional, ainda que apresente clara evidências de atender aos padrões de diversidade cultural propostos pela CDC e aos dispositivos constitucionais é, para Renata Rocha (2013), um projeto crítico, devido “à falta de infraestrutura, à incapacidade de atingir o país como um todo e aos baixos níveis de audiência”. Sérgio Mattos (2012), com críticas semelhantes ao projeto de TV pública nacional, propõe que, para uma maior efetividade na democratização da TVBRASIL, com suas contribuições para a diversidade cultural, deve haver obrigatoriedade da sua presença em todas as cidades do Brasil, formação de redes entre TV educativas estaduais e mantidas pela União e a inserção dos conteúdos da produção regional na TV pública digital.

 

 

6.1.2 TV Comercial:

a) TV aberta privada- A TV aberta, sem ter, no período em exame, sofrido radicais mudanças em sua estrutura de programas ou na qualidade destes, despertou, em 2013, a atenção da Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados[8]; atentos à questão da reduzida veiculação de programas regionais e/ou de produção independente, os parlamentares lançaram a campanha “Quero Me Ver Na TV”, em prol da democratização das comunicações e da diversidade cultural brasileira no espaço da TV (ASSESSORIA PSB, 2013).
Além das medidas propostas pela Comissão de Cultura para a regionalização e democratização da TV aberta, há o fato, apontado por Nelson Sá (2013), de que este meio está em crise, e isto poderá gerar mudanças que favoreçam a diversificação da programação e a forma de se utilizar a TV. A causa da crise está, em grande parte, associada à atração de parcela considerável da população, especialmente a mais jovem, pela internet e pelos aparelhos eletrônicos móveis, como meios de comunicação. Sá afirma que a perda de audiência, e a migração desta parcela da sociedade para outras plataformas, tem provocado uma corrida das emissoras de TV aberta em direção a novas tecnologias e faixas de transmissão. As mudanças, para o autor, deverão provocar a diversificação de conteúdos e a abertura de oportunidades para inserção de programação de teor local e regional.
b) TV por assinatura - Em 2012, a Agência Nacional de Telefonia ANATEL (ANATEL, 2012) produziu estatísticas que demonstram que existia aproximadamente 15 milhões de assinaturas de TV a cabo no Brasil, o que corresponderia a um número aproximado de 50 milhões de brasileiros usuários do serviço. Leonardo Brant (2013) revela, em 2013, que o crescimento deste mercado havia sido de 60% nos dois anos anteriores. Este atraente mercado, como é de se esperar, é um importante destino de investimentos das majors[9] - de mercado para produtos e de interesse de anunciantes (Brandt, 2013).
A Agência Nacional de Cinema (ANCINE) (ANCINE, 2011) revela em seu sítio de internet que, para garantir que este importante mercado para produtos culturais estrangeiros, tenha espaço para conteúdos nacionais e independentes e para a produção diversificada, foi sancionada, em 2011, a Lei da TV paga, de nº 12.485.  Ela traz também ao setor novos players – empresas de telefonia móvel - e a articulação entre várias empresas brasileiras, as quais atuam nos vários elos cadeia produtiva do setor das comunicações.
c) TV digital - A tecnologia digital para televisões, é vista com grande otimismo por pensadores atentos ao espaço para a diversidade cultural. Pierre Lévy (2002, apud Amadeu, 2007), criador do conceito de “ciberdemocracia”, vê na era digital o surgimento de um “novo universal” que “abriga pequenas totalidades, sem nenhuma pretensão ao universal", fundado na diversidade, cuja construção é contínua. Sérgio Amadeu (2207) aponta a cultura digital, como a possibilidade de manifestações e expressões essenciais e garantirem a expressão da diversidade da nossa sociedade.

Alexandre Siqueira (2010), por seu turno, ressalta que a migração da TV analógica para os sistemas[10] digitais implicará em, além de questões de ordem técnica, estética, política, na criação de políticas públicas voltadas para a promoção da educação da população para pleno uso e real democratização do meio digital.

6.1.3 O Rádio. O Rádio é um dos principais veículos de comunicação. Segundo a Sabrina Craide (2013), o rádio está presente em 88% das residências brasileiras, perdendo apenas para a televisão, presente em 94% delas. Segundo a mesma fonte, há aproximadamente nove mil emissoras de rádio no país - AM, FM e comunitárias - número que dobrou nos últimos dez anos.  Daniel Slaviero (2013, apud. Craide, 2013), presidente da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT), destaca que o rádio está se adaptando às tecnologias da internet, celular e smartphones. Desta forma, insere-se no mercado de alta competitividade das informações e do entretenimento.  Outra mudança, recente, é a migração de emissoras AM, para as faixas de FM, por ação do governo, que lhes permitirá uma melhor transmissão de sinal (STARCK, 2013).  
Em relação à diversidade cultural, há inúmeras opções numa busca de internet, em que rádios de localidades espalhadas pelo Brasil clamam que sua programação estimula a diversidade, ou indicam páginas em que as rádios veiculam eventos de promoção desta.
As rádios comunitárias são, por sua vez, importantes vetores de comunicação e de diversidade cultural. Em torno de 4.500, elas estão organizadas na Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária, que busca, junto ao Ministério das Comunicações, o estabelecimento de novos marcos legais para o setor. As principais questões levantadas são a simplificação dos processos de outorga, o alcance do sinal, e a permissão de patrocínio (ALVES, 2013).

6.2 Políticas públicas na área de cultura

 

A partir de 2003, durante o governo Lula, nas gestões de Gilberto Gil e Juca Ferreira do MINC, Célio Turino esteve à frente da Secretaria de Cidadania Cultural; no âmbito do Ministério, deu-se então a criação e a expansão do programa Cultura Viva, que se materializou em mais de 3000 Pontos de Cultura.  Estes locais propiciaram acesso às redes de internet para populações locais e a expressão e a produção cultural, local ou regional, nas mais distintas áreas das artes e da produção intelectual. Através de editais, numa gestão de modelo democrático, os Pontos de Cultura, espalhados pelo Brasil, possibilitaram que milhares de iniciativas diversificadas recebessem apoio financeiro e institucional do governo e fossem divulgas em redes sociais. Os Pontos de Cultura foram considerados a melhor e mais expressiva iniciativa de políticas públicas para a área cultural do País. Cultura, neste período, foi conscientemente encarada como “processo e não como produto” (TURINO, 2011).  Esta iniciativa esteve nitidamente conectada às recomendações da CDC, e em acordo com as diretrizes constitucionais para cultura[11].

Durante a gestão de Ana Hollanda à frente do MINC, o Cultura Viva entrou em crise e recebeu severas críticas. Dentre as reclamações, houve a de que o projeto dos Pontos de Cultura havia sido deturpado, tendo então sido privilegiados projetos que dessem retorno financeiro (CALGARO, 2012). Marta Suplicy, que sucedeu Hollanda, a poucos dias de assumir o MINC, resgatou os ânimos: anunciou a audaciosa meta de constituição de 15 mil novos Pontos de Cultura até 2020. Os Pontos estão dentre os 53 objetivos do Plano Nacional de Cultura (PT, 2013). Se a promessa da atual ministra  cumprir-se, será um grande investimento de governo na diversidade cultural brasileira.

 

6.3 Gestoras culturais falam de seus projetos em relação às diretrizes da CDC

 

A fim de conhecer de perto se pessoas do meio cultural trazem, para seus projetos, as diretrizes da CDC e se buscam a chancela da UNESCO para sua realização, foram realizadas duas entrevistas.

 

4.3.1 Beth Costa, pesquisadora da Sala do Artista Popular, do Centro de Folclore e Cultura Popular: Maria Elizabeth Costa, a Beth Costa é pesquisadora do programa Sala do Artista Popular, do Centro de Folclore e Cultura Popular (CNFCP) - Museu de Folclore Edison Carneiro, no Rio de Janeiro. O programa, que teve início em 1983, trabalha com pesquisa, documentação, difusão e fomento de arte popular e do artesanato brasileiros, em caráter permanente. Embora anterior à Constituição de 1988 e, em muito, à CDC, o projeto antecipa exemplarmente o espírito das normas que tratam de direitos culturais no Brasil e no mundo. Beth Costa relata a natureza do trabalho realizado na Sala do Artista Popular: as mostras de arte e artesanato popular permanecem abertas ao público por um mês, em média; sobre cada coletivo de artistas, que expõem no CNFCP, são produzidos catálogos; os artistas recebem, durante o período de exposição, pró-labore; o Centro promove – de forma permanente – o espaço para comercialização dos produtos dos artesãos catalogados e o contato direto destes com compradores e frequentadores do Centro. Todas estas ações, tem, há mais de 30 anos, produzido efeitos duradores nas vidas de milhares de artesãos, de todas as partes do Brasil, como a consequência de tornar suas atividades econômica, social e ambientalmente sustentáveis, de conectá-los com outros museus, galerias e lojas, além de lhes abrir oportunidades de participarem de cursos, oficinas e projetos de audiovisuais. O CNFCP mantém, também, um acervo de todos os trabalhos e dos artistas que os produtos.    

Sobre a ligação do programa da Sala do Artista Popular com a CDC, Costa mostrou conhecer bem a Convenção e saber dimensionar sua importância estratégica no cenário internacional, mas, afirmou que no programa do CNFCP, não houve, até o momento, conexão direta com a CDC. Ela acrescenta que o programa de promoção do artesanato popular está em acordo com as diretrizes da CDC, e com outros tratados da UNESCO, como a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, de 2003 (COSTA, 2013).

 

4.3.2 Daniele Ramalho, idealizadora e gestora do projeto África Diversa: Daniele Ramalho realiza o encontro África Diversa com o apoio da Prefeitura do Rio de Janeiro, desde 2011. O projeto, criado no Ano dos Povos Afrodescendentes, promovido pela ONU, cresce a cada edição em importância e participação popular.  Promove o encontro de artistas populares, de todos os segmentos das artes, e intelectuais, promove atividades culturais com contadores de histórias tradicionais da cultura africana e afrodescendente, apresentações de música e dança folclórica, artesanato, e exposições.  Por ter apoio da Prefeitura do Rio, o evento é gratuito e acessível a todos.

Perguntada se o evento, que dignifica a diversidade cultural, possui conexão com as diretrizes da Convenção, a gestora afirmou que teoricamente sim, mas que não há uma ligação explícita. Ramalho conhece superficialmente a CDC e afirma achar interessante vir a ter a chancela da UNESCO para o África Diversa, uma vez que, em suas próximas edições, “o projeto pretende se estender em direção a países africanos para promoção de um real intercâmbio” (RAMALHO, 2014).

 

7. RECOMENDAÇÕES DE INTELECTUAIS PARA FAZER VALER A CDC NO BRASIL

 

José Márcio Barros, especialista em questões ligadas a diversidade cultural, afirma que as promessas de interconectar cultura, e sua diversidade, com desenvolvimento e, portanto, com comércio de bens e serviços culturais - contidas na Convenção da Diversidade Cultural da UNESCO, não se cumprem com facilidade, nem de forma automática. Para o autor, os embates entre a concepção de cultura como mercadoria e desta como representativa de identidade e valores sociais parecem estar longe do fim. São disputas de bilhões de dólares que estão em jogo com cada pacote de filmes ou de programas de TV comprado ou recusado. Há, para o autor, um longo trabalho à frente a fim de se fortalecer políticas que conduzam as diretrizes da CDC para a construção, no nível internacional, de relações mais equilibradas entre as nações. Barros ainda afirma ser fundamental a tomada de consciência sobre a importância da diversidade cultural nos programas de formação de docentes e no desenvolvimento de diretrizes para os programas escolares, no âmbito do Ministério da Educação. (BARROS, 2008)

Para Giselle Dupin, assessora de relações internacionais da Secretaria da Cidadania e Diversidade Cultural do Ministério da Cultura, “no que diz respeito à diversidade cultural, nem tudo pode ser comemorado”. A autora aponta desafios: a convenção precisa ganhar forças, através de maior adesão de Estados, para obter um peso mais equilibrado em relação aos acordos de natureza comercial; para o Brasil, Dupin vê como desafio o combate à concentração dos meios de comunicação de massa nas mãos de poucos e poderosos grupos – “fortes o suficiente para fazer recuar o governo em relação à determinação constitucional de regionalização da produção audiovisual e de radiofônica” (DUPIN, 2011).   
Paulo Miguez, professor do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA, e coordenador do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da UFBA, observa as diferenças existentes entre o MINC e o Ministério da Comunicação na construção de uma participação brasileira na CDC e na democratização da cultura no Brasil. O segundo ministério, para o autor, não tem atuado com força suficiente no combate aos monopólios das telecomunicações (MIGUEZ, 2011).
Piatã Stoklos Kignel (2009) ressalta a importância da sociedade civil na implementação da Convenção sobre Diversidade Cultural da UNESCO. Para o autor é fundamental a compreensão de que somente com a sua participação da sociedade civil a CDC ter efeitos de real significado (KNIGEL, 2009).[12] 

8. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, adotada pela UNESCO em 2005, possui capital importância. A carta, constituída numa era de exacerbação do fenômeno da globalização, apresenta diretrizes voltadas para a proteção e a promoção da diversidade cultural, com enquadramento jurídico internacional. A Convenção fornece instrumentos equilibrados para o combate à homogeneização cultural global que conectam diversidade cultural a desenvolvimento e ressaltam o valor econômico das expressões artístico-culturais.     
Os conceitos e princípios introduzidos no ambiente internacional pela Convenção foram construídos gradativamente. As reações à hegemonia cultural, especialmente a exercida pelos Estados Unidos sobre o restante do mundo, vem, ao longo de décadas, encontrando distintas formas de resistência - das “cotas de tela”, surgidas na década de 40, passando pela “exceção cultural”, empunhada durante a criação da OMC, nos anos 90, até o conceito mais abrangente da valorização da diversidade das expressões culturais.  
Para o Brasil, a ratificação e a internalização do tratado, em 2006, veio somar o conteúdo da Convenção aos direitos internos relativos a cultura, constantes da Constituição Federal e de decisões do STF. Com a entrada da Convenção no direito interno, criou-se um respeitável arcabouço jurídico de direitos culturais e de instrumentos de políticas públicas, no sentido da promoção e da proteção da diversidade das expressões culturais.  Dentro deste ambiente, O MINC, durante as gestões de Gilberto Gil e Juca Ferreira como ministros, posicionou-se fortemente em acordo com os princípios e metas da CDC e o ordenamento constitucional, no tocante à promoção da diversidade cultural.  As principais políticas públicas de governo na área de cultura, deste período, foram o destacado projeto Cultura Viva, com os Pontos de Cultura, e a estruturação da TV Brasil, como modelo de TV pública nacional, adotando-se a diversidade cultura como de base do projeto.
Embora a promoção da diversidade cultural esteja claramente subjacente às políticas de governo na área cultural, parece haver pouca atenção à comunicação, de parte do próprio governo e de representantes da UNESCO no país, em disseminar as diretrizes da Convenção, assim como buscar a chancela e outros apoios que esta instituição da ONU possa disponibilizar para projetos nacionais, em andamento e futuros, que possuam viés na diversidade cultural. Este é o caso dos projetos a Sala do Artista Popular, do Centro de Cultura Popular e Folclore Edison Carneiro, e do projeto África Diversa.
No cenário da cultura de massa no Brasil, onde o oligopólio de empresas nacionais e internacionais concorre para o enfraquecimento dos valores tradicionais da sociedade e de suas fontes simbólicas, existem iniciativas de regulamentação em alguns segmentos, como na TV aberta - por iniciativa da Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados - quanto à TV por assinatura e nas rádios comunitárias, que favorecem a diversidade da programação. Quanto à TV digital, para a qual se encaminha o segmento da televisão, há expectativas, por parte de intelectuais, de abertura de uma era de grande interatividade e comunicação descentralizada e diversificada no país, e no mundo.   
Duas observações merecem pesquisas mais aprofundadas em próximos trabalhos: de que as políticas públicas voltadas para o segmento cultural no Brasil apontam ser medidas de governo, de determinadas gestões no segmento, porém não parecem fazer parte de uma postura de Estado; e, no que tange à proteção e promoção da diversidade cultural, parece haver a ausência de um entendimento harmonioso entre as distintas esferas de governo na área de cultura, comunicações e educação.
Considerando-se a importância de se trazer para o direito interno a Convenção da diversidade cultural, de validá-la no ambiente vivo da cultura, considerando-se as imposições a que está submetida a sociedade diante da sedução de uma indústria cultural voltada para estimular o consumo e valores majoritariamente acríticos, considerando-se a conexão entre a proteção da diversidade cultural e o desenvolvimento e a sustentabilidade do planeta, é impositivo que as instituições públicas e privadas: atuem no campo da cultura, em âmbito local, regional, nacional e internacional, colocando em prática a cartilha da Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais. É fundamental que sejam aplicados os instrumentos da CDC para a criação de uma sociedade que esteja sempre sendo aperfeiçoada, de um ambiente de valorização da tradições e renovação, e de um país que tem ainda um longo trajeto para ser de fato democrático e igualitário.

9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, Vania. Grupo de trabalho vai discutir regulamentação de rádios comunitárias. Câmara dos deputados. 2013. Disponível em < http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/COMUNICACAO/455841-GRUPO-DE-TRABALHO-VAI-DISCUTIR-REGULAMENTACAO-DE-RADIOS-COMUNITARIAS.html>. Acesso em 10 de jan. 2014. 

ANATEL. TV por assinatura cresce 2, 16% e chega a 50 milhões de brasileiros. 2012. Disponível em < http://www.anatel.gov.br/Portal/exibirPortalNoticias.do?acao=carregaNoticia&codigo=26794> . Acesso em 10 jan. 2014.

ANCINE. Lei da TV Paga. 2011. Disponível em <http://www.ancine.gov.br/lei-da-tv-paga>. Acesso em 12 jan. 2014.

ASSESSORIA do PSB. Comissão de Cultura lança campanha por diversidade cultural na TV aberta. 2013. Disponível em

BARACAT, Alyssa C. Proteção da cultura na UNESCO e o novo paradigma de desenvolvimento.  CELACC/ECA-USP. 2012. Disponível em <http://www.usp.br/celacc/ojs/index.php/blacc/article/viewFile/365/326>. Acesso em: 8 jan. 2014

BARBOSA, Denis Borges. Os direitos culturais e o boi descontrolado. 2011. Disponível em <http://www.denisbarbosa.addr.com/arquivos/novidades/direitos_culturais.pdf> Acesso em: 26 dez. 2013

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[1] Para Paulo Miguez (2011) esta é uma demonstração de que não a CDC não estaria submetida a outros instrumentos normativos internacionais, como os de natureza comercial regulados pela OMC.


[2] Exclusão de conteúdos audiovisuais nos tratado de livre comércio entre os Estados Unidos e a União Europeia.
[3] Exceção cultural é um conceito introduzido pela França, nas negociações do GATT em 1993 para que cultura receba um tratamento distinto daquele dado aos produtos comerciai (FONTE: http://en.wikipedia.org/wiki/Cultural_exception)
[4] O Brasil, o ex-ministro da Cultura do Brasil, Gilberto Gil, nos fóruns internacionais que conduziram á CDC, atuou na defesa de politicas afirmativas para as inciativas existentes no campo da cultura e na redação final e aprovação do texto da Convenção, reafirmando os direitos culturais como direitos humanos e como instrumento de dialogo entre distintas identidades.

[5] Como direitos humanos, os direitos culturais provenientes de tratados internacionais, podem ser recepcionados como normas supralegais ou diretamente par dentro do texto constitucional.  Há divergências entre Ministros do Supremo Tribunal Federal.  Em qualquer dos casos, seus efeitos sobre as leis infraconstitucionais serão idênticos, pois “têm o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante” (SOUZA, 2013).


[6] Não está dentro do escopo deste trabalho cobrir todo o segmento cultural nacional, com a multiplicidade de manifestações e ações que se originam das coletividades, das instituições públicas e das privadas.

[7] Período em que é constituída a CDC (2005), e ela passa a repercutir no cenário cultural dos Estados signatários, e em que o Brasil a ratifica, em 2006. 


[8] Os deputados envolvidos, José Stédile (PSB/RS), Nilmário Miranda (PT/MG), Jorge Bittar (PT/RJ), Luciana Santos (PCdoB/PE), Jean Wyllys (PSOL/RJ), Paulo Rubem Santiago (PDT/PE), Artur Bruno (PT/CE).

[9] Dentre as mais importantes, está AOL Time Warner, Disney (ESPN, Buena Vista), NBC Universal, News Corporation (Fox, MGM, Sky), Sony (Columbia, CBS) e Viacom (Paramount, MTV, Nickeloldeon)
[10]  A migração do sistema analógico para o digital irá ocorrer em 2018.

[11] Em dezembro de 2013, Martha Suplicy, à frente do Ministério da Cultura, lançou edital para 85 novos pontos de cultura na cidade São Paulo No atual governo, parte do programa dos Pontos de Cultura, em níveis estadual e municipal prosseguem; sente-se, porém, que deva haver um redimensionamento financeiro e estrutural do projeto.   


[12] Para Barros (2011), neste sentido, a sociedade civil “não faz parte da Convenção”. Deve-se, assim “inscrevê-la no processo” para que a Convenção seja apropriada pelo país, e para que ela produza, de fato, transformações.

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