quinta-feira, 16 de outubro de 2008

1975

1975. Outubro.
Colégio Dante Alighieri. Cursava meu último ano de “científico”.




Numa manhã, antes que Marino tocasse o sino, estávamos em sala. Nós, alunas do 3° A, e o professor Anadir, da abjeta cadeira de Moral e Cívica – obrigatória então. Conversávamos. Ele lia um jornal.

Ríamos relaxadas. Uma colega disse-nos, então, que, na noite anterior, enquanto lia a matéria no livro de Moral e Cívica, com sono, lera que o “Brasil é o poleiro do mundo” e não “celeiro”, como constava do texto.

Eu, com minha juba “nova-baiana” loura de então, que ria e falava alto, que tentara discutir em sala o fim da guerra do Vietnam, que ocorrera em abril - projeto sumariamente abortado pelo professor - eu, que “inocentemente” lhe perguntara por que o Dante não tinha alunos negros e não oferecia bolsas de estudo a jovens carentes… eu, que vinha cutucando aquela fera com vara curtíssima... repeti, agora, em voz alta o que a colega dissera: “Brasil é o poleiro do mundo”.

A fúria. Naquele instante, céu e mar fundiram-se. O professor Anadir de Moral e Cívica abaixou seu jornal. Enquanto o sino já tocava, fitou-me enrubescido. Paramos todas congeladas, alienadas ou engajadas. Ajeitamo-nos silenciosa e desconfortavelmente em nossas carteiras escolares. Ele se ergueu. Pareceu mais alto. Andou até mim. Com um gesto de dedo, expulsou-me de sala.

Caminhou comigo, em silêncio, o longo corredor até a sala do diretor da escola, professor Porta. Ele então me pediu que esperasse na ante-sala. Bateu à porta do escritório do diretor. Entrou. Por quinze minutos, confabularam. Anadir retirou-se. Eu permaneci, sentada no sofá de couro marrom da diretoria. Assim fiquei por longo tempo. Pareceu como se fora uma hora. Porta então saiu de seu escritório e me chamou.

Sua primeira pergunta. “Qual é a origem de seu sobrenome?” Como se ele não soubesse! “Sou judia”, respondi, “meu pai é romeno, naturalizado brasileiro”. Porta fez silêncio e perguntou, rindo, “mais brasileira ou mais judia?”.. Conversa de morcego velho, anti-semita. Éramos uma escola e uma sociedade paulistana de brasileiros e brasileiros italianos, judeus, sírios, armênios, e japoneses. 30 anos antes, cantava-se La Giovanezza antes das aulas. E avanti o popolo!

Disse ainda, que estava estudando se meu caso não se enquadraria no decreto-lei 477, ato da ditadura, de 1969, pelo qual aluno considerado subversivo não poderia se matricular em qualquer instituição de ensino por três anos.

A sinistra conversa durou um pouco mais. Permaneci o resto da manha no sofá marrom. Ao soar do sino de saída, 12h15min, o diretor disse que eu podia ir-me.

Naquela noite, em casa, deu-se a ceia que precede Yom Kipur. Um clima estranho, para mim. Não iria à escola no dia seguinte. Yom Kipur. Aguardava para ver o que seria de mim um dia depois. Mas, em torno de 11 da manhã do dia da festa judaica, o telefone tocou. Meu pai estava sendo chamado pela escola. Fui à CIP buscá-lo. Fiquei, e ele foi ao Dante.

Logo, o pequeno grande homem voltou. Contou-me o que havia dito a Porta: “Professor, a Maysa tem sido sempre uma excelente filha. Como pai, não tenho qualquer queixa dela. E, com vocês, tenho compartilhado nove anos de sua educação e vida. Confio que tomarão a decisão mais sábia. Bom dia professor”.

Não fui expulsa. Não fui enquadrada no DL 477. Disseram que não se aplicava a alunos de secundário. Sei lá. Teria sido a importante fala de meu pai o que me manteve ali? Ou terá sido uma disputa de forças, dentro da escola, resultou na minha permanência na instituição por mais um mês e meio, até me graduar?

Em novembro, o professor “moral e cívico” pediu-nos que escrevêssemos sobre “As relações externas do Brasil”. Eu usei o tema para fazer uma redação sobre o infame voto do Brasil na ONU concordando que “sionismo é racismo”, um tema levado a ONU pelos membros da OPEP, numa época em que estavam com a bola toda. Pensei que esta ousada redação fosse ser o meu fim. Tive vontade de vomitar quando a entreguei para Anadir. Mas ele me deu oito. Mistério. Que sentido fazia aquilo? Ele se tornou diretor uns anos depois. Talvez fosse este o sentido. Não polemizar com o staff. Guardo ainda a redação.

Numa festa, no final do ano, soube que o famoso professor César de biologia, (co-autor dos difundidos livros textos César e Sézar) foi quem fez minha defesa na escola. Nesta despedida ainda, numa pizzaria da Av. Brigadeiro, umas colegas, que não haviam entendido nada do episódio, armaram uma situação em que fiquei de cara com Anadir, rodeada por elas. Ele me disse que estava bonita com minha roupa hippie. Não acreditei. Deu-me a mão. Huuuugo!

Era 1975. Dia 29 de outubro Vlado foi assassinado no DOI-CODI. Minha amiga Lucia Merlino e eu fomos à missa Ecumênica, na Sé, escoltadas pelo incansável pequeno grande homem. Conhecemos a música de Mercedes Sosa e os versos de Violeta Parra nesta época. ”O mestre sala dos mares” se ouvia na rádio FM, na voz de Eliz Regina. Vi Catatau, de Leminski, na livraria. O rabino Sobel fez com que Herzog fosse enterrado no centro do cemitério, e não nas margens como se faz com suicidas. Fomos ao enterro. Brevíssimo.

Ano frio. Muito frio. Dizem que era aí o começo do fim da ditadura. Ainda durou anos. Veio a democracia, e nós brasileiros e nossos irmãos latinos “nos quedamos” com o rescaldo de tudo isso. Uma geração de gente que estudou mal, ou não estudou, que não falou de política e que hoje se constitui, ao menos no Brasil, numa imensa audiência da novela das 8hrs da Globo.

Só que ela passa bem mais tarde.

Nenhum comentário: