quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Cine Bijou

Nos primeiros anos da década de 70, nas imediações da Praça Roosevelt, existia uma pequena sala de cinema. Era o Cine Bijou.

Quem passasse por ali, então, caminhando nas velhas e degradadas ruas do entorno da praça, não poderia supor jamais que aquela feia salinha de cinema semanalmente presenteasse seus freqüentadores com o que havia de mais belo e sublime da arte do cinema. O Cine Bijou foi, naquela época, a mais refinada sala de exibição de filmes de arte que existiu em São Paulo.

Seus freqüentadores assistiram ali o melhor do que até então se havia feito em termos de cinema. Dos filmes que me lembro, estão o delicioso “Dodeskaden” e o “Sétimo Samurai”, de Kurosawa; “Viridiana” e o “Cão Andaluz”, de Buñuel; de Federico Fellini, “Noites de Cabíria” e “Julieta dos Espíritos”; o cult "Easy Rider" de Dennis Hopper; o estranho “A última Sessão de Cinema”, de Peter Bogdanovitch; “Teorema”, intrincado filme de Pasolini; a comovente história tcheca de Ján Kadár e Elmar Klos, “A Pequena Loja da Rua Principal”; “M, O Vampiro de Dusseldorf”, eletrizante obra prima de Fritz Lang; de Robert Wiene, de 1919, o sinistro “O Gabinete do Doutor Caligari”; “Encouraçado Potekim”, de Eisenstein; “Cenas de um Casamento” e “Morangos Silvestres” de Ingmar Bergman... e tantos, e tantos outros.

Nada se igualou ao Bijou. Embora passasse ao largo de ser uma sala Cinemascope, ou Cinerama com som de alta fidelidade – o top de linha em salas de cinema de então - foi um marco na noite paulistana, embrião da inextinguível paixão por cinema de muitos cinquentões que andam hoje por aí. Manteve a mais pura independência na seleção de filmes exibidos. Foi bravo e corajoso, apresentando obras “perigosas” para aquela sombria década de ditadura militar. Foi delicado, magnânimo e generoso em apresentar-nos diretores sensíveis e seus filmes, de todas as épocas e origens. Um projetor simples de filmes na cabina e uma seleção de películas feita com a maior sensibilidade foram os segredos do Bijou.

Os frequentadores do Bijou eram jovens adultos e uma horda de adolescentes, como meus amigos e eu. Como a censura da maioria dos filmes fosse para maiores de 18, falsificávamos carteirinhas escolares, sem pudor e com a mais justa da razões. O estado da arte em adulterações consistia em raspar-se, cuidadosamente, com uma Gilete, o último dígito do ano de nascimento e escrever, com uma caneta preta ponta fina, o número desejado. Se o jovem cinéfilo tivesse nascido em 1958, em 1972, mudaria o “8” para “4”, e só. Ficava um horror! Mas, no Bijou, isto não era problema. O porteiro, um senhor gordo e meio mal encarado (teria sido ele o dono do cinema, como se dizia?) fazia vistas grossíssimas. Ainda assim, a cada passagem pela roleta, sentíamos um friozinho na barriga e “comprovávamos” nossas idades num gesto rápido e desnatural.

Havia, além disso, um rumor perene de que, a qualquer dia, numa sessão de cinema qualquer, poderia haver uma batida policial e, neste caso, iríamos todos “em cana”... junto com o “porteiro” do Cine Bijou! Diziam que o juizado sabia que havia dezenas de menores de idade infiltrados ali. Meu álibi estava pronto: convenceria a autoridade policial de que a qualidade sublime dos filmes que víamos no Bijou estava além de detalhes, como idade. Gentilmente, em seguida, convidaria o Juiz de Menores a ir conosco ver um daqueles fantásticos filmes de arte.

A cada saída do Cine Bijou, em torno das dez horas da noite nos sábados, íamos comer num dos restaurantes da região. O jantar ou lanche servia para discutirmos o que havíamos compreendido do filme da noite. Fingia-se muito, afinal o que pode entender de “Cenas de um Casamento” um adolescente de 14 anos? Tudo seria “digerido” bem mais tarde. Os restaurantes, palcos para estas complexas discussões, eram o Planeta, O Ferro´s Bar, point de lésbicas, o famoso Sujinho, ou “Bar das Putas”, na Consolação, mais para cima, ou a recém inaugurada Cantina D´Amico Piolim. A noite, que se iniciava sempre no Cine Bijou, era movimentada e interessante!

Em frente ao cinema, a Praça Roosevelt...uma novidade concretamente deselegante na região. Um prefeito biônico qualquer inaugurara, com pompa, a praça que encobria vias expressas, mas que não servia de espaço para crianças brincarem ou velhinhos, distraidamente, conversarem. Terá sido, então, projetada para o pouso de espaçonaves intergalácticas? Mas, na distante década de 70, se alguma destas naves tivesse querido fazer ali sua aterrissagem, certamente teria desistido. Não teria suportado ver tamanho mau gosto e pobreza arquitetônica num espaço público. Esta desistência, contudo, teria sido lamentável. Os ETs afugentados dali não teriam podido freqüentar o Bijou. Não teriam travado contato com o que de melhor se fez na arte do cinema, e que o Cine Bijou nos mostrou. Pena!


P.S. recebi um comentário bacana para este texto. Está, agora, incorporado como anexo do texto. Eis aí:

" Esta é para contar que a Praça Roosevelt está viva novamente! Desta vez não é o cinema, mas o teatro, quem modificou a praça. Quando o grupo de teatro "Os Satyros" se instalou por lá, estava degradada, frequentada por traficantes, prostitutas e travestis. Agora são sete teatros, cercados por bares, animando a vida cultural paulistana, possibilitando uma democrática geléia geral entre antigos frequentadores, público, moradores e atores.
19 de octubre de 2008 7:38" .Lúcia.


Que bom ouvir isso, Lúcia!

3 comentários:

Baepi Arte e Cultura disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Baepi Arte e Cultura disse...

Esta é para contar que a Praça Roosevelt está viva novamente! Desta vez não é o cinema, mas o teatro, quem modificou a praça.
Quando o grupo de teatro "Os Satyros" se instalou por lá, estava degradada, frequentada por traficantes, prostitutas e travestis. Agora são sete teatros, cercados por bares, animando a vida cultural paulistana, possibilitando uma democrática geléia geral entre antigos frequentadores, público, moradores e atores.

cento e cinquenta anos disse...

Maysa, recebi um comentário seu no meu blog sobre "livros descartáveis" e entrei no seu blog para ler alguns posts. Que surpresa gostosa poder ler sobre o velho Cine Bijoux!
É possível que estivéssemos as duas na mesma sessão, recuperando filmes proibidos para menores de 18 e que fomos impedidas de ver na primeira exibição no grande circuito. A especialidade do Bijoux, reprise de filmes maravilhosos, ditos "de arte" me levou a gostar tanto de Fellini, Bergman, Costa Gavras e tantos outros.
Obrigada por me fazer viajar no tempo!
Neta Mello