quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Knishes em flor


Se você não sabe o que são knishes, darei a você aqui uma remota idéia de seu mais profundo significado. Se você sabe o que são,… creia-me, ainda assim não saberá bem do que aqui trato.

Minha avó materna se chamava Esther. Dentre as muitas mulheres que conheci, ela foi a mais perfeita encarnação do que possa ser uma feiticeira, feiticeira da laboriosa culinária judaico-russa. Março ou setembro, duas eram as primaveras de suas tais florezinhas. Knishes-flor, knishes em flor: trouxinhas perfumadas e assadas, de massa, recheadas com batata cozida, cerradas em forma de flor. Margaridas, quando eu era criança; rosas, quando virei adulta.

Minha avó viveu muitos anos em nossa casa. Nas ocasiões em que preparava seus knishes, a cozinha convertía-se em território de batalhas culinárias, proibido para intrusos. Via-a, do umbral, em combate, com um lenço colorido e mal assentado sobre a cabeça. À sua frente, trincheiras de farinha, massa estirada sobre a pia, potes cheios de batata cozida fumegante. Com um copo, infatigável, demarcava na massa centenas de círculos, que, em horas, converter-se-íam em bravos knishes.

Chegava por fim a hora fatal de abrir a porta do forno. Ela os resgatava e, modesta, trazia-os à mesa. Que maravilha! Festa florida para olhos, olfato, paladar e coração. E nunca eram insuficientes. A maga não deixava que faltassem. Nunca saímos da mesa sem ter comido a quantidade que nos apetecesse. Como sabia quanto comeríamos? Como os fazia tão sublimes e iguais?

Em algumas ocasiões, perguntei-lhe a receita. As explicações vieram sempre precedidas de um sorriso distante, que talvez a levasse de volta a sua pequena Shargorod, na Ucrânia. Em seguida, com um "r" de um arrastado só seu,... irremediavelmente imprecisa, dizia "farrrinha, punhados;… sal, pitadas; batatas, tantas quanto necessarrrrias; e água… filtrrrada".

Em todos aqueles anos, nunca se sentou à mesa conosco. Não queria. Além disso, dizia que não "prrrovava" seus próprios knishes. Nem também os maravilhosos varenikes que preparava. Ou os fluden, ou o kashe com macarrão de gravatinha. Sua alimentação, em horários e locais especiais, era rigorosamente austera: matzá, o ano inteiro, e "xicrrrinhas" de café com leite.

A última vez que comi os knishes que minha avó preparava, eu estava na fase de enjôos da gravidez de minha primeira filha. Senti um dia desejo por knishes. Minha avó, então, bem velhinha, mal ficava em pé. Ainda assim, preparou-os e enviou-os para mim. Era uma travessa inteira de knishes, dezenas de rosinhas só para mim! De repouso em casa, naquela tarde, eu os comi todos. Cada knishe, destes derradeiros, como miúdas madeleines, levou-me a lembranças de todos os anos em que minha vó viveu conosco, seu humor fino, suas lágrimas de tanto rir. Seu incurável comunismo. Suas muitas histórias. Seu quesinho por Francisco Cuoco!

Pouco tempo depois, minha avó não seria mais a mesma. Um AVC afastou a mente de nossa querida feiticeira. Logo, ela morreria. Uns anos depois, na fase Google de nossas vidas, encontrei um site sobre Shargorod, http://www.shargorod.org/ . Pude conhecer mais sobre a história da cidade de minha avó e ver fotos, principalmente, das ruas, há muito abandonadas, em que viviam os judeus no começo do século. Há fotos de velhas casas. Teimo que uma tal era a casa da minha vó. Agora, quando me lembro de seus olhos distantes, antes de me passar a inútil receita, cismo que é naquela casa em que pensava, onde, menina ainda, aprendeu com sua mãe as receitas que levou consigo. Resta a lembrança dos sabores, hoje, brilhos na caixinha de memórias que guardo de minha avó.

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